Designação utilizada para denominar a produção artística realizada, sobretudo entre os séculos XVI e XVIII, no quadro do relacionamento estabelecido entre Portugal e a Índia. Em termos de características particulares, e independentemente de se tratar de obras de arte de teor cultual ou laico, as mesmas pontuam-se pela interpenetração das culturas indiana e portuguesa (europeia), a qual se pode manifestar, cumulativamente ou não, nos seus aspectos formais, iconográficos, plásticos, materiais, técnicos e funcionais.
Bernardo Ferrão observa que o termo é uma expressão de origem britânica, atribuível a John Charles Robinson que a utiliza pela primeira vez, em 1881, no texto introdutório do Catalogue of the Special Loan Exhibition of Spanish and Portuguese Ornamental Art, obra que coordena. Aí menciona de forma breve o termo indo-português e a sua conotação com uma produção artística maioritariamente goesa, dos séculos XVII e XVIII, bem como a forte probabilidade, segundo o autor, de que artigos de mobiliário neste estilo pudessem também ser feitos em Lisboa, Porto, Évora e outras cidades portuguesas.
Todavia, e já no contexto nacional, a primeira abordagem em torno da problemática do indo-português cabe a Francisco Marques Sousa Viterbo, dois anos mais tarde (1883), no artigo que escreve, A Exposição de Arte Ornamental. Notas ao Catálogo. Nesse texto, o autor além de distinguir duas potenciais proveniências para as colchas então expostas, a Índia e o (Extremo) Oriente, faz corresponder o termo indo-português a objectos feitos na Índia por artífices indígenas ou em Portugal, sob influência indiana. No ano seguinte, Joaquim de Vasconcelos, a propósito da Exposição Distrital de Aveiro, expande a mesma definição para três categorias, destrinçando objectos feitos em Portugal por artífices orientais aqui residentes, objectos feitos por artífices portugueses sediados no Oriente (em cidades sob alçada da coroa nacional), desde Goa até Malaca e, finalmente, os objectos importados, verdadeiramente genuínos das indústrias asiáticas, cuja raridade e elevada cotação entre nós incitava à sua imitação. A partir da década de trinta do século XX, autores como João Couto, Luís Keil, Maria José de Mendonça, Reynaldo dos Santos e Madalena Cagigal e Silva começam a abordar mais aprofundadamente a arte indo-portuguesa, concedendo especial enfoque à questão das influências e dos aspectos iconográficos. De entre eles, é relevante a leitura de Luís Keil no artigo que publica aquando do Congresso do Mundo Português, em 1940, A Arte Portuguesa e a Arte Oriental, no qual analisa as influências artísticas suscitadas e promovidas pelo encontro das diferentes culturas no decurso da presença portuguesa no contexto do antigo Estado da Índia. A este respeito, Keil estabelece um discurso mais concreto, na medida em que distingue quem intervém, especificando as relações de portugueses com indianos, chineses e japoneses, ao mesmo tempo que define o "estilo indo-português" como o produto de uma arte indígena, numa primeira fase adaptada à cultura ocidental, sobretudo ao nível da temática, a qual é conciliada, mais tarde, com os próprios processos técnicos necessários à sua concretização.
Também a perspectiva veiculada por Reynaldo dos Santos em alguns dos seus estudos, é importante, ao revelar-se sintomática de uma concepção mais ou menos dualista: estabelece uma relação directa entre a arte indo-portuguesa e o espaço geográfico que é a Índia, mais concretamente Goa, como o local lógico para a sua criação; ao mesmo tempo, reconhece outros importantes centros de produção fora daquele país, em Malaca e na China, chegando, mesmo e no caso dos têxteis, a distinguir o bordado indiano do bordado chinês, e a destacar a importância do segundo na Índia, ao nível das peças de cariz religioso. Ainda em 1955, John Irwin publica um pequeno texto intitulado Reflections on Indoportuguese Art, no qual elabora um resumo do que havia sido, até à data, especulado e divulgado sobre o tema. No mesmo artigo apresenta um novo exercício de síntese e de sistematização relativamente às categorias até então consideradas no domínio da produção indo-portuguesa; mantendo as três vertentes identificadas por Joaquim de Vasconcelos, orienta-as para conceitos que conjugam os intervenientes no processo de manufactura e as influências a que se encontram ligadas. Assim, reconhece objectos produzidos independentemente pelos artífices locais, os quais revelam influência portuguesa de carácter secundário ao nível das temáticas; objectos feitos nos territórios sob domínio português pelos artífices nativos, alheios à sua própria herança cultural (uma produção orientada para a exportação) e, segundo Irwin, quase decerto convertidos ao cristianismo. À terceira categoria correspondem os objectos feitos por artífices portugueses com base em protótipos orientais. Para o autor inglês, é na primeira categoria que se produzem os exemplos mais extraordinários, reconhecendo, no âmbito da segunda, uma grande diversidade de objectos litúrgicos, que consistem, na sua maior parte, em adaptações de protótipos europeus sendo que, na opinião de Irwin, a este agrupamento corresponderá talvez uma maior problematização como, por exemplo, a dificuldade em determinar os respectivos locais de manufactura.
Já na década de 60, Maria Madalena Cagigal e Silva publica um importante estudo sobre o assunto, A Arte Indo-Portuguesa, sintetizado em capítulo com o mesmo título na obra Arte Portuguesa, dirigida por João Barreira: aí estabelece, com as devidas ressalvas, que o estilo indo-português se caracteriza por uma combinação especial de elementos indianos e portugueses ou ocidentais recebidos através do nosso país, resultante da fusão das diferentes formas de emprego da decoração, escolha dos motivos e técnicas que, segundo a autora, parecem submetidas a orientação e tratamento característicos. A mesma esclarece ainda que o termo era usado entre nós, especialmente, no sentido decorativo, uma noção contrária à de John Irwin, que o entendia mais numa perspectiva de técnica.
Coube, ainda na mesma década, a Bernardo Ferrão Tavares e Távora o grande impulso que proporcionou com os seus estudos nos domínios da imaginária luso-oriental e do mobiliário e que o autor resume nas obras A Imaginária Luso-oriental e o Mobiliário Português, publicadas em 1983 e 1990, respectivamente. De um termo que começou por ser atribuído a toda a produção que veiculava uma relação de interpenetração entre a cultura portuguesa (europeia) e outras geograficamente coincidentes com o que fora outrora o Império Português do Oriente, o estudioso, através de uma análise comparativa sistémica de exemplares de escultura em marfim, propunha uma nova abordagem segmentando o conceito de indo-português em definições mais específicas e limitadas às culturas intervenientes na produção: era o caso do termo sino-português*, alusivo à relação Portugal/China; do nipo-português*, directamente conotado com os elos Portugal/Japão; do cingalo-português*, no que respeita a bens relacionados com a região do Ceilão; e, não menos importante, do indo-português, assim confinado à produção (supostamente) resultante da intercepção da cultura portuguesa com a indiana.
Nos anos e trabalhos de investigação subsequentes neste domínio artístico - muito embora tenham proliferado os estudos em áreas tão diversas como os marfins, a arquitectura, a escultura ou o mobiliário - verifica-se que pouco ou nada se acrescentou quanto à essência do termo, limitando-se a maior parte dos autores a sistematizar ou a equacionar os conceitos até então avançados. Constitui, no entanto, excepção o artigo que Teotónio de Souza publica acerca da arte cristã de Goa, no qual o autor é peremptório ao afirmar que das peças a que se podem chamar verdadeiramente indo-portuguesas devem ser excluídas aquelas produzidas na Índia pelos artistas da Companhia de Jesus ou outros Europeus - uma posição que justifica como forma de acentuar o domínio das vastas tradições artísticas indígenas (em relação ao pendor cristão) que emana dos objectos produzidos na Índia pelos nativos, como consequência da "forte capacidade da Ásia de resistir melhor do que os povos das Américas e da África às forças da expansão colonial".
Já nos anos mais recentes, uma análise atenta de entradas de catálogos de exposições ou de textos avulsos sobre obras indo-portuguesas revela que o termo tem vindo a ser preterido pelos estudiosos, sobretudo no contexto historiográfico internacional, em benefício de uma outra expressão atributiva: a de produção indiana de exportação para o mercado português. Trata-se de uma opção que, acompanhando os critérios internacionais de catalogação, confere maior prevalência ao local de fabrico dos artigos e não tanto às questões respeitantes às relações artístico-culturais que lhes subjazem.
Bibliografia:
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Data de publicação
2009
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