O início das relações entre cidades portuguesas e italianas deu-se entre o fim do séc. XIII e o início do séc. XIV. Depois da abertura das rotas comerciais de Génova, Pisa e Veneza para Inglaterra e Flandres, especialmente para os portos de Southampton, Londres e Bruges, os soberanos portugueses concederam importantes benefícios fiscais às frotas que paravam nos portos do reino, tendo assim como objectivo controlar as mercadorias vindas de cidades italianas e exportar produtos locais.
Virginia Rau, Federigo Melis e, mais recentemente, Luisa D'Arienzo, historiadores da Economia, identificaram quatro tipos principais de mercadorias comerciadas entre cidades italianas e Portugal: têxteis, principalmente lã vinda de Florença, seda de Florença e Luca, e brocado e tafetá de Bolonha; vários produtos manufacturados, incluindo louça, armamento dos vales de Bréscia e Bergamasque, e papel de Fabriano e Colle Val d'Elsa; trabalhos artísticos, como códices com iluminuras, pintura em painéis, mobiliário valioso, estátuas e cerâmica, principalmente de Florença e Veneza; e, finalmente, depois da invenção da imprensa, livros sobre todos os ramos do conhecimento (principalmente sobre gramática, retórica, teologia e astrologia, assim como autores clássicos do latim, grego e hebreu, entretanto redescobertos pelos humanistas italianos) provenientes das lojas de papel e de impressão de Florença, Veneza, Bolonha e Roma.
Portugal exportava sobretudo cabedal, pigmentos, peixe seco e frutos, e em 1470 começou a comercializar o açúcar da Madeira (especialmente para Génova e Florença) e escravos. Açúcar e escravos constituíram a fortuna económica de Portugal no Mediterrâneo e ajudaram a consolidar as experiências de navegação de alto mar em naus - grandes navios, de forma arredondada, que eram adaptados para viagens longas e armados para a guerra - e em caravelas, embarcações mais rápidas.
Em 1317 Dom Dinis (1261-1325) nomeou Manuele Pessagno de Génova para almirante-mor da marinha real. Pessagno - oriundo de uma família de armadores da Ligúria que organizava expedições mercantis para Inglaterra (ad partes Anglie) - tinha autoridade jurisdicional sobre todos os marinheiros portugueses, assim como permissão da Coroa para passar a posição que detinha aos seus descendentes directos. Como comandante de uma frota portuguesa por volta de 1336, o nobre genovês Lanzarotto Malocello redescobriu uma das treze ilhas que os geógrafos clássicos do latim e do grego tinham apelidado de as Insulae Fortunatae (as Ilhas Afortunadas), um lendário arquipélago localizado nos limites do então conhecido mundo. O arquipélago passou a chamar-se as Ilhas Canárias, de acordo com um nome usado por Plínio na sua Historia Naturalis; cinco anos depois, em 1341, aí chegou a expedição parcialmente apoiada pelo filho de Dom Diniz, Dom Afonso IV. Liderados por Nicoloso da Recco e pelo florentino Angiolino del Tegghia de' Corbizi, os navios portugueses exploraram todo o arquipélago das Canárias e, provavelmente, também a Madeira. Recco, um dos vinte comandantes especificados no contrato de Pessagno com a Coroa portuguesa, foi identificado nos documentos notariais do período como um speciarius (um mercador de especiarias). A tripulação compreendia diversas nacionalidades: portuguesa, castelhana, maiorquina, genovesa e florentina. Alguns mercadores florentinos que trabalhavam no ramo sevilhano do banco da Compagnia dei Bardi juntaram o relatório de Recco e enviaram-no para a sede do banco. Escrito no dialecto florentino, o relatório foi traduzido para latim pelo jovem Giovanni Boccaccio (1313-1375); o poeta e autor estava ligado ao banco através do próprio pai. O De Canaria et insulis reliquis ultra Ispaniam in Occeano noviter repertis, escrito por Boccaccio em 1342, é o mais completo testemunho existente dessa viagem de descoberta.
No séc. XV as relações ficaram gradualmente mais fortes. As ligações com proeminentes centros italianos de comércio, cultura e política, nomeadamente com Florença (terra dos abastados mercadores Marchionni, Cambini e Sernigi), Génova e Veneza, eram especialmente importantes. Pelo Mediterrâneo navegavam inúmeros navios - portugueses, italianos, ibéricos. Os portugueses ofereciam os seus serviços a Génova, Florença, Veneza, e também a Málaga, Valência e Maiorca. Ao mesmo tempo, era criada uma rede de consulados nos principais portos mediterrânicos que, para além das cidades já mencionadas, incluíam os portos de Andaluzia, norte de África, Sicília, Sardenha e mesmo as ilhas gregas. Estas ligações aconteciam dentro de uma rede comercial pan-europeia que ligava o Mediterrâneo ao Atlântico: no norte da Europa, criavam-se importantes laços entre Augsburgo e Nuremberga, na Alemanha, e Bruges e Antuérpia, na Flandres.
Companhias mercadoras florentinas, genovesas e portuguesas também encorajavam a constante presença de estudantes, de membros do clero e da nobreza portuguesa nas universidades e nos centros culturais italianos. Era nos centros académicos de Bolonha, Ferrara, Siena, Florença, Pavia, Pádua, Perúgia e Pisa que se formavam os estudiosos portugueses mais importantes da época, que recebiam graus académicos em lei civil, lei canónica, teologia e filosofia. Estudantes, monges e nobres portugueses que se mudassem para Itália recebiam dinheiro da Coroa, através da rede de agências de troca de moeda: as companhias de Iacopo di Ser Vanni, de Ghinetti e de Bartolomeo Marchionni. Os câmbios de fundos eram feitos nas principais praças italianas e na cúria papal, a partir de Florença.
Um importante capítulo na história das relações entre cidades italianas e Portugal compreende o comércio de especiarias e a mudança operada nas rotas de comércio das especiarias e no equilíbrio após a expansão portuguesa nos oceanos Atlântico e Índico durante o séc. XVI.
Quando as frotas de Vasco da Gama e de Cabral regressaram a Lisboa, respectivamente em 1499 e em 1501, com um carregamento de especiarias (Cabral também trazia um carregamento de ouro de Sofala), Veneza tornou-se o mais importante centro para especiarias adquiridas através de relações diplomáticas e comerciais com os Mamelucos. Com a inauguração, mesmo no início do séc. XVI, de uma impressionante rota oceânica para as tradicionais áreas de cultivo de especiarias do Oriente, i.e., a costa do Malabar, Ceilão e, algumas décadas mais tarde, as Molucas no arquipélago da Indonésia (Insulíndia), os portugueses irromperam no comércio eurasiático de especiarias e desafiaram directamente os interesses comerciais de Veneza.
Estudos sobre a história do comércio de especiarias português, um trabalho persuasivo de um dos decanos da erudição histórica portuguesa, Vitorino Magalhães Godinho, trouxeram à luz do dia a maior parte da documentação existente relacionada com o comércio e com as políticas adoptadas para as especiarias durante o séc. XVI. De acordo com Godinho, o império português, mesmo que difuso, era um império praticamente sustentado pelo comércio ultramarino, provendo 68% dos rendimentos da Coroa em 1515; era, em essência, um império do Oriente, em que as especiarias orientais eram a mais importante fonte de rendimento, maior do que a combinação de quaisquer outras fontes do rendimento português doméstico, sendo responsáveis por cerca de 40% do rendimento total acumulado da Coroa. A história portuguesa é dominada por essa orientação até à década de 1580, quando o grande ciclo subsequente da história económica de Portugal começa: as periclitantes possessões orientais são gradualmente substituídas pela relativa proximidade e segurança dos territórios brasileiros.
A visão tradicional, herdada do clássico de John Adams, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, publicado em 1776, sugerira que o aparecimento dos portugueses no oceano Índico tinha representado o toque a finados do comércio veneziano de longa distância. No final de contas, parece que o comércio português pouco prejudicou o de Veneza e do Mediterrâneo em geral (foi apenas nos primeiros quinze anos do séc. XVI que os venezianos desapareceram do mercado global de especiarias), e crises várias surgiram entre a Coroa portuguesa e o estado Veneziano. As questões principais destas crises estavam relacionadas com a abertura de uma feitoria da Coroa em Antuérpia em 1506, e com as negociações com os venezianos para a entrega do comércio de reexportação desde 1521 e 1527, altura em que se pensa que o senado de Veneza terá proposto a Dom João III que fizessem um contrato para toda a pimenta desembarcada em Lisboa, exceptuando a que era destinada ao consumo doméstico. Por fim, foi apenas no final do séc. XVI que as redes medievais de comércio dominadas pelo fornecimento veneziano foram gradualmente substituídas pelas novas redes globais dominadas pelos impérios português e holandês.
Com base na pesquisa feita sobre os laços comerciais entre Portugal e Itália desde a Idade Média, estudos mais recentes das literaturas portuguesa e italiana têm levado a uma análise cultural comparativa da interacção entre os dois estados, principalmente no que concerne o debate do uso do latim e das línguas vernaculares; a interacção das igrejas portuguesa e italiana na Contra-Reforma; o contributo italiano para a arquitectura e pintura portuguesas do séc. XVI; os italianos existentes em Portugal durante a época da expansão portuguesa; os patronos portugueses do comércio livreiro de Florença e Veneza; os estudantes e o clero portugueses em Roma, Bolonha e Florença; e a colecta real portuguesa.
Enquanto desafia, de uma vez por todas, os antigos pontos de vista sobre essas interacções (sumarizadas no mote italiano "a Itália deu, Portugal recebeu"), estes estudos produziram um ponto de vista mais verdadeiro e equilibrado dessas interacções, realçando três processos culturais de maior importância: a separação e incorporação dos portugueses em Itália, e dos italianos em Portugal; a aquisição, apropriação e imitação da cultura do outro; e a criação e comemoração do passado.
Na sequência dessas investigações, os estudiosos também se têm debruçado sobre o significado da palavra "Portoghese" na Itália do séc. XVI. "Mais comummente do que se imaginaria - advoga Anthony Molho - referia-se a um cristão-novo (um judeu convertido ao Cristianismo), ou a um judeu novo (um judeu que, tendo-se convertido ao cristianismo, voltava ao judaísmo). A presença desses "Portoghesi" era considerável em Livorno, Ancona e Veneza (assim como em Ferrara, Florença e Roma). Eles tinham as suas próprias sinagogas, eram muitas vezes referidos como os "Natione Portoghese" e, talvez de forma mais crucial para os estudiosos interessados na difusão cultural, até pelo menos as primeiras décadas do séc. XVIII usavam a língua portuguesa para comunicar uns com os outros. [
] Estes portugueses foram, durante séculos, o veículo da cultura portuguesa em Itália".
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Data de publicação
2009
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