Data de publicação
2009
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"Escala do mar poente", nas palavras de Frutuoso, Angra é porto de mar e plataforma atlântica incontornável das descobertas marítimas portuguesas e europeias dos séculos XV e XVI. Nessa essência se constituiu e foi plasmada a respectiva evolução histórica e patrimonial, ao ponto de tal legado inscrever o seu centro urbano, e desde 1983, no registo dos bens universais classificados como Património Mundial. Assentada num pequeno vale envolto por elevações de leste a noroeste, Angra abre-se em concha para o mar, a sul. Não obstante, a primeira área de fixação humana dá-se em área de outeiro, mais no interior e em zona fronteira ao mar, por volta da década de 60 século XV. Ali se fixa Álvaro Martins Homem (futuro 1º capitão da Praia), a quem se deve a liderança da ocupação e o erigir das primeiras infra-estruturas moageiras. Nessa zona mais elevada fez também construir João Vaz Corte Real, 1º capitão de Angra, após 1474 (data da divisão da Terceira em duas capitanias), o castelo dito ora de São Luís, ora dos Moinhos, e de que hoje não resta qualquer vestígio. A ligação ao mar foi-se fazendo então pelo menos por duas ruas na área mais baixa, Rua Direita e Rua do Espírito Santo, ligadas a outras mais tortuosas e íngremes até ao castelo. Entre os anos 70 de mil e quatrocentos e os inícios do século XVI, a urbe avança cada vez mais para o vale, definindo-se aquela antiga mancha reticulada que a caracteriza. Funda-se o concelho, fixa-se o primeiro edifício da câmara no vale, inicia-se a construção da malha urbana em quadrícula. E basta uma vista de relance à carta de Linschoten (1589), para confirmarmos a concretização de um espaço organizado segundo regras urbanísticas e construtivas que as Ordenações do Reino, desde meados do século XV, tentavam implementar. Coube aos capitães a primeira dotação de terrenos para o enraizamento dos povoados nos Açores. Num segundo momento, o alvará régio de 23 de Agosto de 1518 intervém no sentido de maior ajustamento das parcelas concedidas pelas cláusulas das dadas. Para Angra conhece-se a até agora única escritura de dada de chão para casas, de 12 de Abril de 1504. Por esta percepcionamos um lote no sentido da longitudinal, de 232,09/333,96 m2, que em 1508 se conjuga a outro, na área de S. Salvador (mais tarde, Sé), com 201,81/290,4 m2. Aliás, para as épocas mais remotas e com base em amostras insuficientes, afiguram-se-nos aqui lotes maiores do que os registados em 1500 para a área de rossio de Ponta Delgada. Entre áreas de construção pública e privada, Angra erigiu-se com particular dinâmica entre os finais do século XVI e 1ª metade do século XVII, ao qual período recuam algumas das suas mais antigas edificações. Ainda presentes na mancha urbana hodierna, destaquemos a Sé Catedral (1570-1642), a Igreja dos Jesuítas (após 1570-1658) cujo colégio seiscentista foi sede dos Capitães Generais (1766-1830), o Solar e Ermida dos Remédios que no século XVII foi sede do provedor das armadas e o forte de São Filipe (1594-1642), depois São João Baptista, entre outros. Este período de vigor construtivo é concomitante com a dinâmica de um porto onde atracavam, em busca de mantimento, reparo ou protecção, as naus da Rota do Cabo e da Carreira das Índias. Neste sentido, a criação do cargo de provedor das armadas cerca de 1527, que se manteve na família Canto até à respectiva extinção no século XVIII, é sinal inequívoco da precocidade da sua função marítima. Para mais, e por isso mesmo, Angra cedo se tornou centro de redistribuição de alguns produtos exóticos provenientes de paragens distantes, tal como se constituiu em importante centro de informação comercial ultramarina. Tal explica o fluxo dinâmico das gentes e de muito mercadores estrangeiros, com as mais diferentes proveniências, nesta encruzilhada de rotas. Não estranho a este contexto e invocando-se explicitamente o serviço no socorro e provimento das naus, Angra tornara-se na primeira urbe dos Açores elevada cidade, logo em 21 de Agosto de 1534, depois de ter sido, até à década de 80 do século XV, o único centro de jurisdição concelhia da ilha Terceira. Concomitantemente com a elevação a cidade, e a 3 de Novembro do mesmo ano, torna-se também sede do bispado que territorialmente cobre todas as ilhas dos Açores. A sua proeminência estratégica e política exacerba-se quando conduz o famigerado movimento anti-filipino na Terceira. Não tendo sido as suas autoridades as primeiras da ilha a aclamarem D. António, entre elas e o Prior do Crato acabou por se estabelecer uma corrente informativa determinante para o sucesso de uma resistência mais prolongada (até 1583). Instaurado o domínio dos Filipes de Espanha, após a batalha das Mós de 1583, Angra equipara-se a uma capital política do arquipélago, com o estabelecimento da principal figura do poder filipino. Não obstante, viveu nos primeiros anos outro período conturbado, perante este novo agente de poder, cerceador de antigas liberdades e direitos: o mestre de campo ou governador, com jurisdição militar e em sectores vitais da administração civil. Como importante suporte do império ultramarino, vê no seu seio instalar-se o maior baluarte de defesa e vigilância espanhol do Atlântico, tradutor das directivas do novo poder. Reforçava-se assim a vertente militar das políticas em detrimento da comercial, afastavam-se muitos mercadores estrangeiros agora sem possibilidades de aceder directa e legalmente aos produtos exóticos aqui antes redistribuídos. Para mais, a incumbência dada às câmaras terceirenses na manutenção dos militares do presídio, que absorvia a receita concelhia e implicava a imposição de impostos extraordinários sobre os vizinhos, atingiu muito particularmente a câmara de Angra. E esta cedo protagoniza uma acção empenhada na tentativa de se isentar das imposições, como a da taxa do cruzado para o alojamento dos militares, na de fazer aplicar os impostos camarários na resolução exclusiva dos problemas dos moradores e no inerente propósito de poder voltar a gerir as respectivas receitas. Apesar de menos absolutos os poderes do mestre de campo, a partir de 1585, permanece a política de concentração no quadro do anterior sistema administrativo. Para a câmara de Angra, não obstante, em 1625 cresce a presença e a interferência do poder central, através da inspecção das eleições pela mesa do Desembargo do Paço. Situação excepcional nos Açores até à uniformização do procedimento em 1765, em Angra a intervenção foi consequência de violentos confrontos entre os grupos do poder local. Incidindo sobre os anos de 1622 a 1624, diz Drummond que dividiram a fidalguia urbana angrense no "bando de cima", encabeçado por Cantos e Monizes, residentes no alto da cidade, e no "bando de baixo", liderados por Bettencourts e Pamplonas. A gravidade dos eventos foi de tal ordem que extravasou o âmbito meramente local e envolveu figuras como a do corregedor e a do governador, cada qual em lado oposto. Apesar de apaziguados os conflitos, a medida do poder central parece não ter de todo resolvido as oposições, pois ainda em 1634 o corregedor testemunhava irregularidades e embargos na tomada de posse dos novos oficiais. A aclamação de D. João IV pela câmara de Angra, na primeira tentativa de Francisco Ornelas da Câmara, mais uma vez traduziu a presença de forças rivais. Não obstante, os levantamentos populares angrenses iniciados a 26 de Março de 1641, de onde se guarda a memória dos irmãos "Minhas terras", incitaram a revolta. Organizada militarmente a investida, faz-se cerco à fortaleza onde se refugiam o mestre de campo/governador, D. Álvaro de Viveiros, e as tropas espanholas. Rendido o forte, em Março de 1642, após onze meses de resistência e cerco, chega a Angra o novo governador das ilhas, Manuel de Sousa Pacheco. Pela acção e esforço da cidade na luta contra os espanhóis, e por alvará de 1 de Abril de 1643, recebe o título de "Sempre Leal Cidade de Angra". Entretanto, permanecendo como centro político do arquipélago, sente os primeiros embates da política joanina que tenta recuperar o modelo centralista/militarista. Chegado o primeiro governador nomeado por D. João IV, com alçada de um "vice-rei" no dizer de Maldonado, emergem as resistências. Consequência destas últimas são, em 1645, a redução da alçada do agora capitão-mor e governador do "castelo" de São João Baptista ao perímetro da fortaleza. Para mais, em 1650, os poderosos de Angra ainda conseguem o compromisso de audição prévia das ilhas na indigitação do governador. Pareciam assim soçobrar as tentativas de maior centralização administrativa. Mas o papel de Angra como centro político do arquipélago ainda se reforçará no âmbito das reformas pombalinas, com a criação da capitania-geral em 1766. A suprema autoridade dos Açores encontra-se, pois, sedeada em Angra, com particular descontentamento de São Miguel. Daí para cá, acresce registar o protagonismo angrense no quadro da afirmação do liberalismo em Portugal, o que lhe valeu a evolução do topónimo para Angra do Heroísmo.
Bibliografia:
DRUMMOND, Francisco Ferreira, Anais da Ilha Terceira. Reimpressão fa-similada da 1ª edição de 1850. S.l.: Governo Autónomo dos Açores - Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1981, vol. I; FERNANDES, José Manuel, Angra do Heroísmo. Lisboa: Editorial Presença, 1989. FRUTUOSO, Gaspar - Livro sexto das saudades da terra. 2ª ed. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1978. GREGÓRIO, Rute Dias, "Formas de organização do espaço". In História dos Açores: do descobrimento ao século XX. Dir. científica de Artur Teodoro de Matos, Avelino de Freitas de Meneses e José Guilherme Reis Leite. Angra do Heroísmo: Instituto Açoriano de Cultura, 2008, pp. 111-140. IDEM, Pero Anes do Canto: um homem e um património (1473-1556). Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2001. IDEM, Terra e fortuna: os primórdios da humanização da ilha Terceira (1450?-1550). Ponta Delgada: Centro de História de Além-Mar, 2007. LEITE, Antonieta Reis, "Angra. Um porto no percurso da Cidade Portuguesa". Atlântida. Vol. XLVII (2002) 15-57. MATOS, Artur Teodoro de, "A provedoria das armadas da ilha Terceira e a Carreira da Índia no século XVI". In II Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985, pp. 65-72. MENESES, Avelino de Freitas de, Os Açores e o domínio filipino (1580-1590). Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1987, 2 vols. MENESES, Avelino de Freitas de, Os Açores nas encruzilhadas de Setecentos (1740-1770). I: Poderes e instituições. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1993, tomo I.
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