Definição geral
As capitanias hereditárias, em primeiro lugar, devem ser entendidas, dentro do contexto geral da expansão ultramarina portuguesa, como uma política régia para a colonização, ou seja, a ocupação e a montagem de estruturas produtivas em áreas ainda inexploradas, seja pela ausência completa de uma população autóctone, como nas ilhas atlânticas, ou muito pouco exploradas pelos nativos, como na costa do Brasil ou em Angola.
Tal política essencialmente significava a transferência da responsabilidade da colonização das novas áreas para vassalos, possuidores dos recursos necessários para a empresa, em troca de uma série de direitos e vantagens que compensassem largamente os riscos do empreendimento.
Normalmente as capitanias hereditárias estão associadas à doação de uma grande extensão de terras, mas tal idéia é incorreta. Na realidade, a leitura das cartas de doação e das cartas de foral, instrumentos legais da instituição, esclarece que a Coroa doava aos donatários a jurisdição civil e criminal, ou seja, o direito de governar o território e sua população, doando também uma série de direitos régios, base material do poder senhorial que se erguiria na capitania.
Dessa maneira a jurisdição doada ao donatário poderia abarcar áreas de extensão variável, maiores, por exemplo, nas primitivas capitanias do Brasil e menores, evidentemente, nas ilhas atlânticas. Já o conjunto das terras deveria ser doado aos interessados, permitindo-se ao donatário a manutenção, como propriedade pessoal, apenas de uma área relativamente pequena das terras. Porém, cabia ao donatário uma série de direitos senhoriais doados pelo monarca em nome da Coroa, por exemplo, o direito de cobrar tributo ou foro sobre moendas e engenhos, ou em nome da Ordem de Cristo, em especial o direito a parte do dízimo cobrado na capitania.
Destaque-se ainda na doação a delegação do controle da justiça na capitania ao donatário, que deveria nomear um ouvidor, com alçada variável conforme o caso, meirinho, escrivães e tabeliães. Ficava ainda vedada a entrada nas terras da capitania de corregedor ou de outros oficiais da justiça real. Além disso, estabelecia-se nas doações que os donatários utilizariam o título de "capitão e governador"; poderiam criar vilas, alcaides-mores, entre outros direitos.
Do ponto de vista econômico, contudo o monarca reservava para a Coroa o direito sobre a exploração do pau-brasil, sobre os dízimos e o quinto dos metais e pedras preciosas, entre outros, cabendo aos donatários apenas uma parte reduzida desses rendimentos.
Muitos historiadores viram na extensão dos direitos concedidos pela Coroa aos donatários as bases para a constituição de uma espécime de regime feudal, fato que caminharia na contra-mão do processo de centralização do poder monárquico em Portugal do período.
A tese do caráter feudal das capitanias hereditários suscitou vivo debate entre os historiadores até meados do século XX, porém, pode-se dizer que, em grande medida, pela quase ausência de fontes documentais e pelo pouco desenvolvimento das próprias capitanias hereditárias, tal debate acabou restrito à análise das cartas de doação e de foral e às opiniões de cada autor, levando, dessa maneira, a certo esquematismo teórico, que desconsiderava a inserção real das capitanias dentro do processo de expansão.
Criadas inicialmente no processo de ocupação das ilhas atlânticas no século XV, as capitanias foram estendidas para a América e para a África, durante o processo de conquista do Brasil e de Angola no século XVI. Contudo, as dificuldades encontradas pelos donatários nestas duas últimas áreas obrigaram a intervenção direta da Coroa, o que fez com que as capitanias hereditárias fossem perdendo importância já no próprio século XVI. Sendo, porém, as últimas capitanias extintas definitivamente apenas por Pombal no século XVIII, após um prolongado período de decadência.
O caso das capitanias hereditárias do Brasil
Após a viagem de Pedro Álvares Cabral em 1500, as terras americanas, que cabiam a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas, ficaram relegadas a relativo descaso, sendo visitadas principalmente por expedições em busca de pau-brasil.
As novas terras, contudo, despertaram a atenção dos franceses. A presença cada vez mais constante destes colocou a questão: ou os portugueses ocupavam efetivamente as novas áreas ou as perderiam.
Neste sentido, a armada de Martim Afonso de Sousa em 1530 foi o primeiro passo dessa nova orientação, não só por fundar a primeira vila portuguesa em solo americano, mas também por ser a partir dela que se efetua a divisão das capitanias hereditárias.
D. João III primeiro acatou a sugestão de povoar as novas terras, para em seguida anuir em doar as terras aos vassalos. Essa decisão foi tomada em 1532, no meio da viagem de Martim Afonso de Sousa. O rei determinou dividir a costa entre Pernambuco e o Rio da Prata, reservando cem léguas para Martim Afonso de Sousa e cinqüenta para o irmão dele, Pero Lopes de Sousa, distribuindo as demais a algumas pessoas com obrigação de levarem navios e gente à sua custa.
Assim, entre 1534 e 1536, foram doadas as primeiras capitanias. Doze foram os agraciados em quinze quinhões, contudo, em apenas oito delas a colonização deu os primeiros passos.
Esta fase inicial é normalmente avaliada como um fracasso, salvo as exceções das capitanias de Pernambuco e São Vicente. Pondere-se, contudo, que dadas as condições limitadas e o tamanho da tarefa, não é de desprezar que mesmo com todas as dificuldades, as capitanias conseguiram cumprir, mesmo que parcialmente, uma etapa inicial da luta pela posse das terras, servindo de apoio a novas investidas e ampliando o conhecimento sobre as terras e suas possibilidades de aproveitamento.
A tarefa de ocupação e defesa das novas terras exigia a montagem de uma estrutura produtiva, para além do extrativismo do pau-brasil, que viabilizasse economicamente o empreendimento, para tanto se buscou ocupar as terras e explorar a força de trabalho indígena.
A reação portuguesa à resistência indígena agravou o conflito, pois a saída encontrada à recusa dos nativos ao escambo, ou seja, em trabalharem em troca de produtos de forma permanente, foi a escravidão pura e simples dos nativos.
A conseqüência disso é que a crescente resistência indígena à colonização, apoiada ou não na aliança francesa, passou a ameaçar as conquistas portuguesas de forma cada vez mais vigorosa, até que na década de 40 do século XVI esteve possivelmente perto de eliminar a presença lusa entre Pernambuco e São Vicente, sendo os portugueses fortemente atacados em quase todas as capitanias.
Os casos mais graves foram em 1546, na Bahia, onde os portugueses de Francisco Pereira Coutinho foram obrigados a se refugiar em Porto Seguro e, posteriormente, acabaram desbaratados, inclusive com a morte do donatário; e em São Tomé ou Paraíba do Sul, no atual norte fluminense, onde os índios destruíram a povoação batizada como Vila da Rainha, levando os moradores à fuga para o Espírito Santo.
No final do mesmo ano, sintoma da desagregação que atingia os primeiros núcleos, o donatário de Porto Seguro, Pero do Campo Tourinho, é preso por um movimento que envolveu boa parte dos moradores e remetido a Lisboa para ser julgado pelo Santo Ofício.
A partir de 1546, as investidas dos índios atingem São Vicente, ganhando força no ano seguinte, obrigando os moradores a engajarem-se numa guerra defensiva que se manteria até a criação do Governo Geral.
A deteriorização da situação dava largos passos, em 1548, os ataques atingem Pernambuco, Ilhéus e Espírito Santo. Os portugueses viram-se acuados, as vilas de Iguaraçu e Olinda foram cercadas, no Espírito Santo boa parte das benfeitorias foi destruída, com a morte de muitos moradores, situação semelhante em Ilhéus, e que perduraria ainda nos anos seguintes.
Os donatários deram o sinal de alarme nas cartas enviadas ao monarca, em que comunicavam não só a perda da Bahia, mas também o fortalecimento da presença francesa e da ameaça indígena, além do clima geral de descontrole ao longo da costa. A Coroa foi obrigada pelos acontecimentos a assumir um papel maior do que até então tinha desempenhado na colonização do Brasil, criando, em fins de 1548, o chamado Governo Geral, com um objetivo imediato: defender a presença portuguesa nas terras americanas.
O novo sistema de governo adotado se sobrepôs ao regime anterior das chamadas "capitanias hereditárias", sem extingui-lo, porém este foi paulatinamente perdendo a importância. A desbaratada capitania da Bahia, sede do Governo Geral, foi comprada pela Coroa aos herdeiros de Francisco Pereira Coutinho, tornando-se a primeira capitania real. Portanto, a partir de 1549, ocorreu uma reorganização político-administrativa, as capitanias passaram a ser de dois tipos, particulares ou da Coroa, e acima delas a estrutura do Governo Geral.
A criação do Governo Geral determinou algumas adaptações necessárias. As maiores alterações foram particularmente no tocante à limitação da alçada da justiça nomeada pelo donatário, a possibilidade da entrada de corregedor da Coroa nas capitanias, antes vedada, e a nova relação dos donatários e moradores em geral com a Coroa, agora mediada, em grande parte, pela presença nas partes do Brasil do governador geral.
Dessa forma, quando a colonização portuguesa retomou a ofensiva, conquistando novas áreas ao longo da costa, essas conquistas foram organizadas como capitanias reais. No fim do século XVI, a Coroa já contava com cinco capitanias contra seis privadas e, trinta anos depois eram oito reais contra seis privadas.
Além disso, as capitanias reais se desenvolveram num ritmo mais acelerado que as privadas, assim, no início do século XVII, enquanto Bahia, Paraíba e Rio de Janeiro iam em franco desenvolvimento, as capitanias particulares, com exceção de Pernambuco e Itamaracá, estavam estagnadas, como São Vicente ou Espírito Santo, ou em franca decadência, como Ilhéus e Porto Seguro.
Por tudo isso a visão de que capitanias como a de Pernambuco gozavam de autonomia em face do Governo Geral não corresponde a realidade. A capitania de Duarte Coelho conseguiu manter certa autonomia apenas enquanto viveu o primeiro donatário. Depois cada vez mais a Coroa, via Governo Geral, passou a interferir na administração local, inclusive nomeando vários capitães-mores durante a menoridade do donatário, entre, pelo menos, 1593 e 1614, ou com a permanência por largos anos dos governadores gerais na capitania no início do século XVII, fazendo que a família donatarial empreendesse uma enorme luta não para defender a autonomia, mas simplesmente para garantir suas prerrogativas básicas.
O ponto alto dessa luta foi na segunda metade da década de 1610 e início da seguinte, quando Matias de Albuquerque retomou o governo da capitania para a família donatarial, entrando em conflito com o governador geral e seus representantes em Pernambuco. Contudo, a invasão holandesa encerraria essa disputa. Em 1654, com a expulsão dos holandeses, as capitanias de Pernambuco e Itamaracá foram incorporadas a Coroa, mas o golpe final no sistema só viria no século XVIII quando foram completamente extintas.
Bibliografia:
As informações gerais sobre as capitanias e os donatários podem ser obtidas facilmente em VARNHAGEN, Francisco Adolfo de, História geral do Brasil, 5a ed. 5 vols. São Paulo: Melhoramentos, 1956, especificamente no vol. I, da p. 136 e seguintes. A discussão clássica sobre o tema se encontra em DIAS, Carlos Malheiro (Dir.), História da Colonização Portuguesa do Brasil, 3 vols. Porto: Litografia Nacional, 1922, nos artigos de MERÊA, Paulo, "A solução tradicional da colonização do Brasil" e DIAS, Carlos Malheiro, "O regimen feudal das donatárias", respectivamente nas pp. 165 e 219 do III volume. O estudo mais moderno sobre a questão é o de SALDANHA, António de Vasconcelos, As capitanias do Brasil, 2a ed. Lisboa: CNCDP, 2001. Os documentos fundamentais foram publicados em Doações e Forais das Capitanias do Brasil (1534-1536), Apresentação, transcrição e notas de Maria José Chorão. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1999.
Data de publicação
2010
Categorias
Entradas associadas
Autoria da imagem
Alexandra Pelúcia
Legenda da imagem
Vista da Baía de Todos-os-Santos, Salvador da Bahia