Data de publicação
2014
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Ocorrida a 23 de Janeiro de 1565, a batalha de Talikota opôs os sultões confederados do Decão (Bijapur, Ahmadnagar e Golconda) às forças do Império hindu de Vijayanagar, saldando-se por uma derrota destas últimas com grandes implicações para a história do subcontinente indiano e para o Estado da Índia.

Desde a subida ao poder em Vijayanagar do rajá Ramaraya (r. 1550-1565) que o sempre instável equilíbrio de poderes entre os sultões do Decão sofreu uma intervenção crescente por parte daquele soberano. Ao contrário do seu antecessor Krishnadevaraya (r. 1506-1530), que se empenhara na submissão dos chefes locais no Sul e no estabelecimento de uma fronteira estável a norte com os sultanatos do Decão, Ramaraya decidiu, praticamente desde o início do seu reinado, valer-se das rivalidades entre os sultões do Decão, para implantar a sua supremacia. Anterior comandante militar em Golconda de onde fora expulso e tendo sido colocado no trono de Vijayanagar por intervenção de Bijapur, Ramaraya não hesitou em intervir na guerra que, em 1558, opôs o recém-entronizado sultão Ali Adil Shah I de Bijapur (r. 1557-1580) ao sultão Hussein Nizam Shah de Ahmadnagar (r. 1553-1565). Sendo solicitado por Bijapur a participar na guerra visto Ahmadnagar ter-se unido a Golconda e ao mais pequeno sultanato de Berar, Ramaraya aproveitou a ocasião para conquistar posições ao sultão Ibrahim Kooth Shah de Golconda (r. 1550-1580). Tentou ainda entronizar um irmão deste último sultão e ameaçou assenhorear-se por completo do sultanato de Ahmadnagar, aproveitando as suas derrotas. Durante a guerra, Ramaraya não hesitara em destruir mesquitas e insultar os mouros, já depois de assinadas as pazes, não acompanhara Ali Adil Shah à saída do encontro que com este manteve, deixando este ressentido.

Na qualidade de principal lesado por aquela guerra e percepcionando os planos hegemónicos de Ramaraya para a região, o sultão de Golconda iniciou preparativos para uma Liga dos sultanatos do Decão que viesse a defrontar militarmente Vijayanagar. Assim, finda a guerra, propôs o casamento do sultão Ali Adil Shah de Bijapur com uma irmã do sultão Hussein Nizam Shah de Ahmadnagar e o enlace de Murtaza, príncipe herdeiro de Ahmadnagar, com uma irmã de Ali Adil Shah de Bijapur. Visava através destes casamentos selar a paz entre os dois mais poderosos e sempre rivais sultanatos do Decão de forma a alcançar a sua concentração no objectivo estratégico de abater Ramaraya. No entanto, compreendendo que tal poderia não ser suficiente para comprometer Bijapur e Ahmadnagar, Ibrahim Kootb Shah não hesitou em solicitar o auxílio da Pérsia Safávida, escrevendo ao Xá Thamasp (r. 1524-1576). Este último, respondeu aos sultanatos xiitas do Decão seus vassalos (Bijapur e Golconda), exortando-os ao espírito de guerra santa quer contra os hindus, quer contra os cristãos. Desta forma, o sultão de Golconda logrou o compromisso de Bijapur, que também escreveu ao Xá Thamasp, assegurando-lhe a sua suserania e comprometimento com o que pedia, na guerra contra Vijayanagar. Não foi difícil convencer o sultão Hussein Nizam Shah, também ele lesado pelas intenções hegemónicas de Vijayanagar sobre os seus territórios, a comprometer-se para a guerra.

Mesmo depois de reunido um exército numericamente superior e das preocupantes notícias acerca da confederação que contra ele era preparada, Ramaraya desvalorizou a situação, considerando que, uma vez mais, bastaria manipular as tradicionais discórdias entre os sultões do Decão para vencer a batalha. Assim, aos 80 anos de idade, Ramaraya partiu para o campo de batalha, sofrendo a deserção fatal de dois capitães para o lado islâmico e acabando por ser capturado e degolado pelo sultão de Ahmadnagar. O seu falecimento, o posterior saque das riquezas da mítica “Cidade da Vitória” (tradução literal da capital que dava nome ao Império Hindu: Vijayanagar), bem como a ocupação de diversos territórios do Império por parte de Bijapur, selaram o final de um ciclo. Não apenas se abatera um dos grandes líderes militares do subcontinente, como a solidez do Império que este tanto lutara por ampliar, se esboroara por completo com o seu desaparecimento. Apesar de alguns membros da família de Ramaraya ainda terem escapado e terem-se refugiado no Sul, não mais o Império de Vijayanagar se viria a restabelecer. O caminho para a expansão e islamização do Sul da Índia, até então impedido pela existência do poderoso Império hindu, estava então aberto.

As consequências da batalha de Talikota, no entanto, não se fizeram sentir apenas e unicamente no âmbito da política dos sultanatos do Decão. Também o Estado da Índia, que desde o início da sua existência apoiara a sua sobrevivência, em diversos contextos político-militares no subcontinente, na sua aliança com Vijayanagar, era directamente ameaçado pela nova posição hegemónica dos sultões do Decão. Não apenas por desaparecer um tradicional amigo que para o Estado da Índia servia como elemento de dispersão de tensão relativamente às praças confinantes com os territórios de Bijapur e Ahmadnagar, como por tal desaparecimento implicar uma nova fase de expansionismo militar daqueles sultanatos, que ameaçava directamente a Ásia Portuguesa. Não só aqueles sultanatos ficavam livres para atacar com toda a sua força o Estado da Índia, como, no caso de Bijapur, a ocupação de anteriores territórios de Vijayanagar entrava em conflito aberto com os interesses portugueses. Especialmente no caso da costa do Canará, cujas principais cidades-estado mercantis eram tradicionalmente tributárias de Vijayanagar, e onde Ali Adil Shah de Bijapur não tardou a evidenciar interesse em delas tomar posse.

Já durante toda a década de 1550, o Estado da Índia estivera atento às guerras entre os sultões do Decão e Vijayanagar e chegara, através da tentativa de entronização do sultão Meale em Bijapur, protagonizada pelo vice-rei D. Pedro Mascarenhas (1554-1555) e prolongada durante o governo de Francisco Barreto (1555-1558), a intervir nessas disputas. Apesar da aparente acalmia que marcou as relações, nomeadamente com Bijapur, em tempos de D. Constantino de Bragança (1558-1561), as notícias de preparação de uma Liga Islâmica contra o Estado da Índia principiaram no tempo do vice-rei D. Francisco Coutinho, 3º conde de Redondo (1561-1564), quando começaram a circular os rumores de que Hussein Nizam Shah de Ahmadnagar enviara embaixadores a Istambul, pedindo socorros para atacar os Portugueses. No entanto, foi apenas durante o governo do vice-rei D. Antão de Noronha (1564-1568) que se confirmaram plenamente esses rumores e que aquele vice-rei, logo em 1564, ainda antes da ocorrência da batalha de Talikota, informou a Coroa da adversa conjuntura que se avizinhava. Naquele momento, os protagonistas da Liga seriam Ahmadnagar, que poderia cercar Chaul, e o sultanato guzerate, que apesar do processo de decomposição interna que já então vivia durante o reinado de Muzafar III (1561-1573), poderia cercar de novo Diu.

A ocorrência de nova disputa pela hegemonia regional do Decão entre Ali Adil Shah de Bijapur e o novo sultão de Ahmadnagar, Murtaza Nizam Shah (1565-1588), em renovada guerra entre 1566 e 1569, veio, porém, a adiar os preparativos e ataques da Liga. Aproveitando a ocorrência de tal guerra e estando informado de que o rajá de Cananor escrevera a Bijapur propondo formalmente uma Liga contra o Estado da Índia, o vice-rei D. Antão ocupou a primeira praça da costa do Canará antes que Bijapur o pudesse fazer: Mangalor. Já em 1569, o vice-rei D. Luís de Ataíde (1568-1571) ocupou Onor e Barcelor de forma preventiva. Sabendo já então o vice-rei Ataíde que a Liga se estendia aos soberanos de Sitawaka, Achém, Johor, Japará e Masulipatão, procurou, ainda antes do início dos principais cercos (Goa, Chaul e Chale), enviar reforços para Malaca a fim de se preparar para os tempos adversos que antevia.

Assim, terminada a guerra entre Bijapur e Ahmadnagar em 1569, Ali Adil Shah de Bijapur, escudando-se num conjunto variado de argumentos, propôs formalmente a Liga contra o Estado da Índia, quer a Ahmadnagar, quer a Calicute. Entre esses argumentos encontrava-se o que considerava ter sido a imparável política de conquistas portuguesas (com as ocupações de Asserim, Manorá e Damão, no Norte, e Japafanapatão, em Ceilão) e de proselitismo cristão na Índia, acentuada com o estabelecimento da Inquisição e a chegada do arcebispo a Goa em 1560, os numerosos incidentes navais reforçados desde a reinstauração do sistema dos cartazes pelo vice-rei D. Francisco Coutinho, 3º conde de Redondo, e a necessidade de responder ao apelo do Xá Thamasp. Apesar deste apelo, no caso de Ahmadnagar ser de pouco valor por se tratar de um sultanato sunita, é importante não esquecer que também o Império Otomano, por então, tal como a Pérsia Safávida, apelava à guerra santa contra os Portugueses, e prometia auxílios vagos que não chegariam a concretizar-se. Realizada a futura repartição das praças a conquistar ao Estado da Índia, a Liga iniciou os seus ataques no subcontinente indiano em 1570 com os cercos simultâneos de Chaul e Goa protagonizados pelos sultões de Ahmadnagar e de Bijapur, respectivamente. Já em 1571, Chale foi cercada e perdida às mãos do Samorim de Calicute. Posteriormente, entre 1571-75 viriam a decorrer um conjunto de cercos a Malaca e em 1575, em processo distinto, mas não desconectável do ambiente geral criado no Índico islâmico por Talikota, perdeu-se definitivamente Ternate nas Molucas.

Em suma, a batalha de 23 de Janeiro de 1565 não só inaugurou o cenário mais adverso de sempre à presença dos Portugueses na Ásia, como ainda teve em pano de fundo a intensa rivalidade entre Otomanos e Safávidas que, incapazes de atacar o Estado da Índia, apostaram, no âmbito do papel de liderança do mundo islâmico sunita e xiita, respectivamente, em liderar uma política externa influente fundada numa campanha de guerra santa contra os Portugueses. É também relevante não esquecer que a batalha de Talikota, enquanto acontecimento inaugural da crise político-militar de 1565-65 na Ásia, decorreu em simultâneo ao grande enfrentamento entre cristãos e muçulmanos no Mediterrâneo com o cerco de Malta (1565), a ocupação de Chipre (1570) e a batalha naval de Lepanto (1571). Foi para prevenir a sua ocupação pelos muçulmanos que nos anos imediatos os portugueses conquistaram os portos de Honor, Barcelor e Mangalor, no Canará. Assim, mais do que marcar o declínio irreversível do Estado da Índia, as duradouras consequências da batalha de Talikota, que apenas viriam a ser substituídas no subcontinente indiano pela expansão do Império Mogol, sob a égide do Imperador Akbar (r. 1556-1605), vieram a acelerar tendências anteriores. Tais tendências são plenamente visíveis num conjunto variado de propostas reformistas encaradas como a forma de vencer a crise e viriam a contribuir decisivamente para a afirmação de diferentes projectos de territorialização no Estado da Índia a partir dos finais do reinado de D. Sebastião.

Bibliografia:
History of the Rise of the Mahomedan Power in India, till the year A. P. 1612, translated from the original persian of Mohamed Kasim Ferishta, edição de John Briggs, vol. III, Londres, Longman, Rees, Orde, Brown and Green, Parernoster-now, 1829; THOMAZ, Luís Filipe, “A Crise de 1565-1575 na História do Estado da Índia”, Mare Liberum, nº 9, Junho de 1995, pp. 481-519; VILA-SANTA, Nuno, "O Vice-Reinado de D. Antão de Noronha (1564-1568) no contexto da crise do Estado da Índia de 1565-1575", Anais de História de Além-Mar, vol. XI, Lisboa/Ponta Delgada, 2010, pp. 63-101; VILA-SANTA, Nuno, "Revisitando o Estado da Índia nos anos de 1571 a 1577", Revista de Cultura, nº 36, Macau, 2010, pp. 88-112; VILA-SANTA, Nuno, A Casa de Atouguia, os Últimos Avis e o Império: Dinâmicas entrecruzadas na carreira de D. Luís de Ataíde (1516-1581), dissertação de doutoramento policopiada, Lisboa, FCSH-UNL, 2013.