Data de publicação
2009
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No estudo introdutório à sua edição de II Compasso da Navigare, obra italiana da segunda metade do século XIII (c. 1250-1265), Bacchisio R. Motzo explica que ela se compõe de duas partes: um guia escrito para a navegação do Mediterrâneo, a que se chamava «portulano», e a carta náutica que o ilustrava. Assim, o portulano seria a palavra que correspondia então ao roteiro português do século XVI e ao périplo da Antiguidade, e basta uma ligeira leitura do texto para se reconhecer que a equivalência proposta é perfeitamente justificada: no portulano usa-se a linguagem simples e directa dos roteiros, ou seja, apenas os rumos que se definiam entre dois lugares referenciados, a distância em milhas entre eles e, como acréscimo eventual mas raro, uma indicação muito breve acerca de um desses lugares (por exemplo: «De Aquilo ao Cabo 20 milhas por nordeste [greco] e um pouco para este [levante]. E do Cabo a Susanna 25 milhas. Susanna é uma ilha plana.», loc. cit., p.7). Existem ainda hoje pouco mais de uma dezena de portulanos, aliás estudados e reproduzidos no início deste século por Konrad Krestchemer, Die italienischen Portulane des Mittelalters, Eine Beitrage zur Geschichte der Kartographie und Nautik (2ª edição, Hildeshein, 1962 [1ª edição 1907]. Se não há dúvida de que a palavra «portulano» corresponde às duas vozes já indicadas (no português e no grego), e ainda ao inglês «rutter» ( a que alguns linguistas preferem uma outra palavra, a meu ver sem raiz bem justificada), ao francês «routier», ao castelhano «derrotero», ao alemão «Seebuch» (designação talvez demasiado genérica) e ao flamengo «leeskaart», esta é a palavra que, em nossa opinião, mais aproxima os textos náuticos que nos ocupam da carta de navegar que eles ilustram. O título do mais antigo portulano conhecido (exactamente o publicado por Motzo, acima citado) levou a que a palavra «compasso» (muitas vezes, e correntemente em inglês, entendida como sinónimo de «bússola») fosse considerada com o sentido de roteiro; e, de facto, o catalão Raimondo Lullo, escrevendo no século XIII, distingue «compasso» de «carta de navegar», distinção que aparece nas versões catalã e latina do texto; é por isso muito possível que usasse «compasso» na acepção habitual que posteriormente teve a palavra «roteiro», aliás em consonância com o título da obra por si preparada; todavia, e como de resto se verifica em muitos documentos catalães dos dois séculos imediatos à compilação de II Compasso, nunca esta última palavra apareceu alguma vez sucedânea de carta, como, aliás, Motzo advertiu; de resto, conhece-se um texto do século XIII que dissipa as dúvidas, exactamente num documento em que se anunciava recambiar para o príncipe de Aragão as presas feitas em um navio do seu país, e onde se fala de «mapa-mundo com compasso». Assim, e porque nesse texto não encontramos a palavra «portulano», «compasso» deverá estar aí por ela, não obstante a evolução semântica que deslocou o sentido da segunda palavra. Uma nota apenas para concluir esta informação: na sua erudita introdução - aliás com abundantes informações úteis - Motzo detém-se algumas páginas a persuadir-nos de que roteiros anteriores serviam de modelo a II Compasso; e talvez não fosse necessário fazê-lo. Com efeito, se não se conhece roteiros medievais, italianos ou outros, que lhe sejam anteriores, conhecem-se alguns da Antiguidade, cujos textos, em parte, chegaram ao nosso tempo; citaremos apenas os seguintes, que de momento nos ocorrem: 1) O «Périplo do Mar Eritreu», do século V a.C., ainda existente; 2) O «Périplo dos Mares da Europa, Ásia e África», idem; 3) Os périplos atribuídos a Timóstenes de Rodes, desaparecidos; 4) O périplo anónimo do «Ponto Euxino»; 5) O «Périplo do Mar Interior» (Mediterrâneo), do século I e de que sobrevivem fragmentos, redigido ou atribuído a Manippsos de Pergamon; 6) O «Périplo do Mar Euxino», de Arriano, século II; 7) O «Périplo de África» atribuído a Hanão, que teria sido inicialmente escrito em púnico, mas teria sobrevivido em língua grega. Havia pois, uma tradição muito antiga e sólida na redacção que vieram a designar-se por roteiros; e se se perde o elo de ligação entre a Antiguidade e a Idade Média, não é de crer que os «portulanos» ou «compassos» maiorquinos e italianos se não radicassem em textos análogos e imediatamente anteriores.

Artigo originalmente publicado no Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, dir. Luís de Albuquerque, e reproduzido por cortesia do Círculo de Leitores