Data de publicação
2009
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Baseando-se na herança científica da cosmografia helenística, de Eratóstenes e do seu contemporâneo Marino de Tiro em Alexandria no séc. II A.D. (o auge da expansão territorial do Império Romano), Cláudio Ptolomeu, sucessor de Eratóstenes na Biblioteca de Alexandria (Egipto), preparou um atlas geográfico que permitia a qualquer pessoa familiarizada com os conceitos de coordenadas astronómicas e desenhos geométricos preparar mapas do mundo habitado conhecido.

A tradição grega dos códices da Geografia de Ptolomeu divide-se em dois ramos: no primeiro, que os historiadores apelidaram de "Grupo A", encontram-se oito livros, para além de vinte e seis mapas regionais e um mapa do mundo habitado conhecido; o segundo ramo, apelidado de "Grupo B", continha sessenta e quatro mapas regionais e um mapa do oikumene. É necessário realçar que as diferenças entre as duas versões manuscritas da Geografia em grego nada têm a ver com o texto, mas sim com o número de mapas.

Em contraste com o trabalho mais importante de Ptolomeu, o Almagesto, conhecido em todo o Ocidente devido à tradução para latim feita por Gerardo de Cremona (que, em 1172, o traduziu do árabe), o Geographiké Uphégesis de Ptolomeu, escrito em Alexandria no século II A.D. e conhecido na língua árabe desde o séc. IX, era praticamente desconhecido no Ocidente até ao início do séc. XV.

Foi apenas nos primeiros anos do séc. XV que o estudioso bizantino Manuel Chrysoloras levou para Florença uma cópia do Geographiké Uphégesis (Guia de Cartografia) de Ptolomeu, possivelmente em conjunto com mapas. Jacopo Angeli da Scarperia (1360-1410/1411), um discípulo de Emanuele Crisolora, traduziu-o para latim entre 1406 e 1409. Jacopo Angeli e o mais importante humanista florentino reconheceram o valor da Geografia de Ptolomeu nos chamados "capítulos teóricos", que focavam a resolução de problemas como a representação gráfica do oecumene, e teoricamente de toda a terra, numa superfície plana sem alterar as proporções e formas da Terra, ao contrário dos anteriores mapas-múndi circulares, dos tempos medievais e renascentistas. Nos capítulos 23 e 24 do Livro I e no capítulo 6 do Livro VII da Geografia (os livros II a VII contêm uma longa lista de mais de 7000 registos de locais, com as suas respectivas latitudes e longitudes que cobrem todo o oecumene, o que permite traçar correctamente localizações geográficas num mapa), Ptolomeu forneceu instruções precisando a construção de mapas de acordo com três métodos geométricos, baseados numa grelha de meridianos e paralelos.

Na altura, Ptolomeu colocou os fins da terra conhecida e habitada em Thule (localizada a 63°N), no paralelo anti-Meroe a 16°25'S, nas Ilhas Afortunadas a oeste, correspondendo ao meridiano primário, e em Sera Metropolis a leste, na longitude 180°. O que ficasse para lá dessas latitudes e longitudes era, para ele, terra incógnita. O oikumene e esta terra incógnita ocupavam 6/7 da superfície do globo, relegando de facto os oceanos para grandes bacias "mediterrânicas". Devido aos extremos níveis de frio (para além dos círculos do Árctico e Antárctico) e ao calor excessivo (o cinto equatorial), mais de metade da superfície terrestre era vista como inabitável.

Peculiaridades geográficas do oikumene de Ptolomeu incluíam um Mar Mediterrâneo que tinha sido alongado mais de 15° em relação à sua real dimensão, e um Oceano Índico contido numa espécie de lago enorme em cujo centro se encontra a ilha de Taprobana. Apesar de ter desenvolvido o conhecimento que Marino de Tiro, e mesmo Hiparco, já tinham, Ptolomeu decidiu corrigir as medidas da circunferência máxima da Terra em 180.000 stadia, como tinha sido determinado por Possidónio, afastando-se assim das estimativas mais precisas de 250,000 stadia, calculadas por Eratóstenes no séc. I A.D. Assim, ele posicionou a maior parte do mundo habitado conhecido no hemisfério norte e fez encolher o globo.

A importância da Geografia de Ptolomeu durante o Renascimento é demonstrada pela existência de centenas de manuscritos em grego, em latim e em línguas vernaculares (53 com mapas) e por 48 edições impressas até 1730, das quais 38 foram impressas antes de 1600 (a editio princeps, sem mapas, foi impressa em Vicenza em 1475). As seguintes são, em síntese, as principais fases de produção e a tradição das traduções da Geografia para latim e para línguas vernaculares.

• Em 1409 Jacopo Angeli da Scarperia traduziu o Geographiké Uphégesis de grego para latim; escreveu, igualmente, uma "Introdução" em que explicava o valor deste trabalho em comparação com a Historia Naturalis de Plínio.

• Em 1415 Francesco di Lapacino e Domenico da Bouninsegni traduziram para latim os topónimos do mapa.

• Em 1418 o cardeal Guillaume Fillastre escreveu o primeiro comentário à Geografia (Guillaume Fillastre, Introductio in Pomponii Melae Cosmographiam Cod. Nancy 441, in Gautier Dalché, P., "L'oeuvre géographique du Cardinal Fillastre († 1428). Représentation du monde et perception de la carte à l'aube des découvertes", AHLDMA, 59, 1992, pp. 357-36).

• Por volta de 1460 Donnus Nicolaus Germanus escreveu uma nova "Dedicatória" em latim (a Paulo II e ao Duque Dorso d'Este) para a Geografia, em que explicava a importância da segunda projecção de Ptolomeu e das razões para a sua adopção.

• Em 1474 Johannes Regiomontanus compôs, em Nuremberga, o Annotationes Joannis De Regio Monte, in errores commissos a Jacobo Angelo in traslatione sua, (publicado em 1525 por Bilibald Pirkheimer), em que criticava severamente a tradução de Jacopo Angeli e propunha uma nova tradução do Livro I e de parte do Livro VII, os "capítulos teóricos".

• Em 1478 Domizio Calderini reviu a tradução de Jacopo Angeli, para a edição romana de 1478 da Geografia.

• Em 1482 Francesco Berlinghieri, depois de quase 30 anos de trabalho, publicou uma tradução da Geografia em língua toscana, "in terza rima" [em terceto ou terça rima].

• Em 1514 Johannes Werner publicou, em Nuremberga, a tradução de Johannes Regiomontanus, juntamente com o "Libellus de quatuor terrarum orbis in plano figurationibus ab eodem Ioanne Vernero novissime compertis & enarratis", em que explicava como construir a projecção cordiforme (in Ptolemaeus, Claudius. Geography. Nuremberg: Stuchs I., 1514, f. 43v. - 48v).

• Em 1525 Bilibald Pirkheimer publicou, em Estrasburgo, uma nova tradução para latim da Geografia.

• Em 1548 Pietro Andrea Mattioli publicou, em Veneza, a primeira tradução italiana da Geografia.

• Em 1561 Girolamo Ruscelli publicou em Veneza uma nova tradução italiana da Geografia, com base na versão em latim de Münster.

• Em 1578 Gerard Mercator publicou 27 mapas da Geografia, inseridos num trabalho de história e cartografia da Geografia.

• Em 1598 Antonio Magini (responsável tanto pelo conteúdo matemático como pela cartografia) e Leonardo Cernoti (responsável pela tradução italiana) publicaram em Pádua a terceira tradução italiana da Geografia.

Tradicionalmente, a recuperação da Geografia durante o século XV foi entendida como um acontecimento marcante do princípio da chamada "Revolução Ptolemaica", com a implicação de que a cartografia "não crítica" e de inspiração religiosa da Idade Média foi substituída pela cartografia científica do Renascimento. Recentes estudos académicos têm afinado esta representação grandemente simplificada do impacto da Geografia e demonstrado que a recepção do trabalho de Ptolomeu foi um processo muito mais complexo do que a literatura tradicional deixa antever. Em vez disso, hoje sugere-se que deveria haver distinção entre os diferentes modos de recepção.

Um primeiro domínio a considerar na recepção da Geografia é o dos humanistas. Os humanistas estavam principalmente interessados no trabalho geográfico de Ptolomeu, sobretudo porque era um texto clássico até à altura desconhecido. Aparentemente, eles não preferiam Ptolomeu a outros autores clássicos de geografia, como Plínio o Velho, Estrabão e Pompónio Mela, cujos trabalhos sobre geografia são mais descritivos do que matemáticos.

Um segundo domínio de recepção da Geografia é o do mapeamento. A cartografia de Ptolomeu não era, no entanto, uma novidade tão grande no ocidente latino como é sugerido pela literatura académica mais antiga. A recuperação da cartografia de Ptolomeu no ocidente latino no início do séc. XV deve ser vista como um novo estímulo ao conhecimento existente, não como um factor revolucionário. Alguns mapas medievais baseados em grelhas sobreviveram, apesar de ser verdade que a função da grelha difere fundamentalmente da latitude e da longitude de Ptolomeu. No séc. XIII, Roger Bacon já tinha descrito um sistema de projecção matemática para um mapa mundial. E do séc. XII em diante já estavam em larga circulação uma certa quantidade de mapas com os graus de latitude, e muitas vezes de longitude, de importantes locais da Europa ocidental.

Um terceiro aspecto a considerar na recepção de Ptolomeu é a forma como a Geografia foi entendida dentro do âmbito do conhecimento tradicional de geografia e do longo processo de expansão da Europa.

Bibliografia
Ptolemy's Almagest; translated and annotated by G. J. Toomer, London, Duckworth, 1984. DILKE, O. A. W., "The Culmination of Greek Cartography in Ptolemy (with additional material supplied by the editors)," in The History of Cartography, eds. J. B. Harley - D. Woodward, vol. 1, Cartography in Prehistoric, Ancient and Medieval Europe and the Mediterranean, Chicago, University of Chicago Press, 1987, pp. 177-200. GENTILE, S., Firenze e la scoperta dell'America. Umanesimo e geografia nel '400 fiorentino, Firenze, Olschki, 1992. J.L. Berggren - A. Jones (eds.), Ptolemy's Geography. An Annotated Translation of the Theoretical Chapters, Princeton, Princeton University Press, 2000. GENTILE, S., "Umanesimo e cartografia: Tolomeo nel secolo XV," in La cartografia europea tra primo Rinascimento e fine dell'Illuminismo, di D. R. Curto, A. Cattaneo, A. F. Almeida, Firenze, Olschki, 2003, pp. 4-18. DALCHÉ, P. Gautier, "The Reception of Ptolemy's Geography. (End of the Fourteenth to Beginning of the Sixteenth Century)", in Cartography in the European Renaissance, edited by David Woodward, vol. 3 della History of Cartography, Chicago, University of Chicago Press, 2008, pp. 285-364.

Traduzido do Inglês por: Dominique Faria.