Data de publicação
2009
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Ribeira é vocábulo que remete para o sítio de uma localidade, nas margens de um rio. Em Lisboa, identificava uma extensa faixa junto ao Tejo, exterior às cercas medievais, começando nas Portas da Cruz, a oriente, e seguindo no sentido de poente até à Porta da Oura (ou do Ouro) e praia de Cata-que-Farás, ao Corpo Santo e Fontainhas. Esta língua de praias e aterros, pela sua múltipla funcionalidade, moldou a topografia sócio-económica de Lisboa nos séculos da expansão. A atracagem de barcas e de pequenos navios servia-se dos cais que pontuavam a zona oriental, desde a Porta da Cruz, até ao imponente Cais da Pedra, cuja construção começou nos últimos anos do século XV, para ancorar navios de grande calado. A partir do Cais da Pedra para poente, as areias do Tejo destinaram-se à construção naval e a armazéns de apoio a esta indústria, muitos de estrutura precária. Os chãos da ribeira eram propriedade do município. A liberdade com que eram aforadas a particulares estas áreas, dir-se-ia, de interesse público, justificou uma provisão de 1515, determinando que não se aforasse nenhum chão na praia de Cata que Farás " assim como vais até Santos e que esteja sempre desocupada a dita praia", "havendo respeito a necessidade que há nesta cidade de Lisboa de lugar onde se possam espalmar e corrigir as naus".
O aterro de lodos e areias junto ao Cais da Pedra, cortou a continuidade da linha marginal e promoveu a distinção funcional das duas bandas da ribeira. No início do reinado de D. Manuel, criou-se um amplo terreiro, embora nunca empedrado, em sítio que se tornava central numa cidade que se estendia para ocidente. A identificação como "terreiro do Paço" viria da decisão régia de aproximar a residência da corte da zona portuária, mudança simbólica de uma nova era em que rei e nobreza se imiscuíam no mundo marítimo, mercantil e militar do império que então se sustentava na ligação ao Oriente, pela rota do Cabo da Boa Esperança (destacar mais a originalidade da relação) . Nas imediações do Paço, alojaram-se os serviços comerciais e fiscais da carreira da Índia, em edifícios autónomos e sujeitos a obras regulares de melhoramento e ampliação, como sucedeu com a Casa da Índia. Mas os Armazéns de Guiné e Índia, órgão da administração central que teve sob sua tutela a logística das armadas, mereceram logo localização no piso térreo do paço real. Uma das suas atribuições respeitou a construção naval, desenvolvida nas praias contíguas ao Paço, em direcção a poente. Na burocracia dos Armazéns de Guiné e Índia, o vocábulo Ribeira designava assim, não toda a faixa marginal, mas especificamente o estaleiro e serviços afins. A memória do local evoca-se na actual Avenida da Ribeira das Naus, embora o sítio dos antigos estaleiros fosse mais recuado relativamente à linha de água.
Apesar da importância da indústria para a manutenção da carreira da Índia, só em 1546 a Ribeira das Naus foi isolado por "parede e varadouro" relativamente a outras obras empreendidas por particulares. A estampa Olissipo de Braunio já o retrata assim vedado, e nele inclui engenhos, dos quais pouco se sabe, mas que tratados coevos de construção naval e descrições da cidade referem ser específicos de unidades vocacionadas à produção de navios grande porte.
Durante o século XVI, qualquer que fosse a modalidade seguida na gestão da construção dos navios (por empreitada ou por gestão directa), sempre as matérias-primas e engenhos eram fornecidos pelo pagador da obra, o que tornou os Armazéns de Guiné e Índia e o da Ribeira, nos maiores repositórios de existências para a indústria e armação. O abastecimento de matérias-primas e bens semi-transformados activaram circuitos comerciais, quer internos, quer dependentes da articulação de Portugal com centros europeus de redistribuição. As madeiras do casco, uma parte do pano para velas e estopa de calafetagem tinham oferta no mercado interno, envolvendo nas redes de provimento do estaleiro regiões de linho, como Entre Douro e Minho, escoando-se as lonas pelo porto de Vila do Conde. Outros panos de linho, de maior dimensão, eram adquiridos na Bretanha, saídos de Vitré e Pous-de-vis. De Torre de Moncorvo, em complementaridade com o Ribatejo, vinha fio de cânhamo para fabrico de enxárcia na cordoaria de Lisboa, então nas proximidades das portas de Santa Catarina (actual rua do Alecrim). Tem-se sobrestimado a importância dos pinhais do litoral de Leiria para a indústria naval de Lisboa. O pinho manso e sobro eram madeiras insubstituíveis para as técnicas usadas, portanto, as matas mais pressionadas pela procura da Ribeira das Nuas encontravam-se no Ribatejo e na margem sul do Tejo, da Charneca a Aldeia Galega, começando a ser insuficientes no período filipino (1580-1640). Os mastros precisaram das florestas escandinavas e da Europa central (estas servidas pelo porto de Riga): as peças únicas, de carvalho e pinho nórdico, eram adequadas ao aparelho de navios com tonelagem crescente, rondando as 500-600 toneladas de frete em meados de Quinhentos. Outros importantes materiais, como breu, pregadura e pasta de ferro, vinham regularmente de Biscaia e contavam com as ferrarias nas imediações da Porta da Oura.
A Ribeira das Naus era um complexo industrial que integrava várias actividades transformadoras, subsidiárias da construção naval e nem todas confinadas ao recinto do estaleiro. O facto de ser uma unidade inserida na administração régia deu-lhe as condições financeiras e organizativas para a sua grandeza, mas também nisso radicava o que tinha de comum com outros estaleiros vocacionados a responder às encomendas dos Estados, sabendo-se que neste enquadramento institucional se encontram os poucos exemplos de unidades transformadoras de feição capitalista na Europa moderna.
Um estudo comparado destes arsenais permitirá aferir o que é específico de Lisboa, mas a capacidade produtiva deste estaleiro só nas primeiras décadas de Quinhentos teve paralelo como o que se verificaria mais tarde nos estaleiros das companhias monopolistas no noroeste da Europa. Contudo, à escala portuguesa, sempre se evidenciou como o maior centro de produção de navios para as armadas da Índia.
As estimativas melhor fundamentadas para aferir ritmos de produção apontam uma capacidade mínima de lançamento de 750 toneladas de frete por ano, o que coloca a Ribeira das Nuas numa ordem de grandeza próxima do dobro de outros estaleiros do reino, igualmente activos. O financiamento dependia fundamentalmente de transferências de verba da Casa da Índia, cobrindo entre 75 a 92% do total das receitas cabimentadas à Ribeira.
Além de disponibilidade financeira, as obras na Ribeira das Naus exigiam mão-de-obra numerosa, mas especializada (carpinteiros, chamados com propriedade da ribeira, e calafates). Mercês régias criaram um corpo dentro da corporação destes ofícios, que reunia 150 carpinteiros e 150 calafates, forçados a trabalhar nos navios de encomenda régia sempre que requisitados, ainda que nestas condições auferissem jornais mais baixos (60 reais) que em trabalhos encomendados por particulares (80 reais).
A actividade da Ribeira das Naus adquire expressão na topografia social da cidade, no morro sobranceiro à praia de Cata que Farás, para Santos. O novo bairro, denominado Bairro Alto, recém urbanizado, de ruas mais amplas que nos velhos bairros orientais, reunia muitas das casas de morada de carpinteiros e calafates.
O alargamento da malha urbana para poente reforçou a centralidade do sítio da Ribeira das Nuas e do paço que lhe era contíguo. E assim aparece na iconografia coeva, que sempre olhava Lisboa como cidade-estaleiro e porto marítimo. Um estaleiro para a construção de navios de grande porte destinados ao mar das Índia, paredes meias com o palácio real. Eis a imagem insofismável da sua singularidade.
Bibliografia:
CAETANO, Carlos (2005), A Ribeira de Lisboa na Época da Expansão Portuguesa (séculos XV a XVIII), Lisboa, Pandora. CASTILHO, Júlio (1893), A Ribeira de Lisboa. Descripção histórica da Margem do Tejo desde a Madre de Deus até Santo-o-Velho, Lisboa, Imprensa Nacional. COSTA, Leonor Freire (1997), Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa. A construção naval no século XVI para a Rota do Cabo, Lisboa, Patrimónia. SENOS, Nuno (2002), O Paço da Ribeira, Lisboa, Editorial Notícias.
O aterro de lodos e areias junto ao Cais da Pedra, cortou a continuidade da linha marginal e promoveu a distinção funcional das duas bandas da ribeira. No início do reinado de D. Manuel, criou-se um amplo terreiro, embora nunca empedrado, em sítio que se tornava central numa cidade que se estendia para ocidente. A identificação como "terreiro do Paço" viria da decisão régia de aproximar a residência da corte da zona portuária, mudança simbólica de uma nova era em que rei e nobreza se imiscuíam no mundo marítimo, mercantil e militar do império que então se sustentava na ligação ao Oriente, pela rota do Cabo da Boa Esperança (destacar mais a originalidade da relação) . Nas imediações do Paço, alojaram-se os serviços comerciais e fiscais da carreira da Índia, em edifícios autónomos e sujeitos a obras regulares de melhoramento e ampliação, como sucedeu com a Casa da Índia. Mas os Armazéns de Guiné e Índia, órgão da administração central que teve sob sua tutela a logística das armadas, mereceram logo localização no piso térreo do paço real. Uma das suas atribuições respeitou a construção naval, desenvolvida nas praias contíguas ao Paço, em direcção a poente. Na burocracia dos Armazéns de Guiné e Índia, o vocábulo Ribeira designava assim, não toda a faixa marginal, mas especificamente o estaleiro e serviços afins. A memória do local evoca-se na actual Avenida da Ribeira das Naus, embora o sítio dos antigos estaleiros fosse mais recuado relativamente à linha de água.
Apesar da importância da indústria para a manutenção da carreira da Índia, só em 1546 a Ribeira das Naus foi isolado por "parede e varadouro" relativamente a outras obras empreendidas por particulares. A estampa Olissipo de Braunio já o retrata assim vedado, e nele inclui engenhos, dos quais pouco se sabe, mas que tratados coevos de construção naval e descrições da cidade referem ser específicos de unidades vocacionadas à produção de navios grande porte.
Durante o século XVI, qualquer que fosse a modalidade seguida na gestão da construção dos navios (por empreitada ou por gestão directa), sempre as matérias-primas e engenhos eram fornecidos pelo pagador da obra, o que tornou os Armazéns de Guiné e Índia e o da Ribeira, nos maiores repositórios de existências para a indústria e armação. O abastecimento de matérias-primas e bens semi-transformados activaram circuitos comerciais, quer internos, quer dependentes da articulação de Portugal com centros europeus de redistribuição. As madeiras do casco, uma parte do pano para velas e estopa de calafetagem tinham oferta no mercado interno, envolvendo nas redes de provimento do estaleiro regiões de linho, como Entre Douro e Minho, escoando-se as lonas pelo porto de Vila do Conde. Outros panos de linho, de maior dimensão, eram adquiridos na Bretanha, saídos de Vitré e Pous-de-vis. De Torre de Moncorvo, em complementaridade com o Ribatejo, vinha fio de cânhamo para fabrico de enxárcia na cordoaria de Lisboa, então nas proximidades das portas de Santa Catarina (actual rua do Alecrim). Tem-se sobrestimado a importância dos pinhais do litoral de Leiria para a indústria naval de Lisboa. O pinho manso e sobro eram madeiras insubstituíveis para as técnicas usadas, portanto, as matas mais pressionadas pela procura da Ribeira das Nuas encontravam-se no Ribatejo e na margem sul do Tejo, da Charneca a Aldeia Galega, começando a ser insuficientes no período filipino (1580-1640). Os mastros precisaram das florestas escandinavas e da Europa central (estas servidas pelo porto de Riga): as peças únicas, de carvalho e pinho nórdico, eram adequadas ao aparelho de navios com tonelagem crescente, rondando as 500-600 toneladas de frete em meados de Quinhentos. Outros importantes materiais, como breu, pregadura e pasta de ferro, vinham regularmente de Biscaia e contavam com as ferrarias nas imediações da Porta da Oura.
A Ribeira das Naus era um complexo industrial que integrava várias actividades transformadoras, subsidiárias da construção naval e nem todas confinadas ao recinto do estaleiro. O facto de ser uma unidade inserida na administração régia deu-lhe as condições financeiras e organizativas para a sua grandeza, mas também nisso radicava o que tinha de comum com outros estaleiros vocacionados a responder às encomendas dos Estados, sabendo-se que neste enquadramento institucional se encontram os poucos exemplos de unidades transformadoras de feição capitalista na Europa moderna.
Um estudo comparado destes arsenais permitirá aferir o que é específico de Lisboa, mas a capacidade produtiva deste estaleiro só nas primeiras décadas de Quinhentos teve paralelo como o que se verificaria mais tarde nos estaleiros das companhias monopolistas no noroeste da Europa. Contudo, à escala portuguesa, sempre se evidenciou como o maior centro de produção de navios para as armadas da Índia.
As estimativas melhor fundamentadas para aferir ritmos de produção apontam uma capacidade mínima de lançamento de 750 toneladas de frete por ano, o que coloca a Ribeira das Nuas numa ordem de grandeza próxima do dobro de outros estaleiros do reino, igualmente activos. O financiamento dependia fundamentalmente de transferências de verba da Casa da Índia, cobrindo entre 75 a 92% do total das receitas cabimentadas à Ribeira.
Além de disponibilidade financeira, as obras na Ribeira das Naus exigiam mão-de-obra numerosa, mas especializada (carpinteiros, chamados com propriedade da ribeira, e calafates). Mercês régias criaram um corpo dentro da corporação destes ofícios, que reunia 150 carpinteiros e 150 calafates, forçados a trabalhar nos navios de encomenda régia sempre que requisitados, ainda que nestas condições auferissem jornais mais baixos (60 reais) que em trabalhos encomendados por particulares (80 reais).
A actividade da Ribeira das Naus adquire expressão na topografia social da cidade, no morro sobranceiro à praia de Cata que Farás, para Santos. O novo bairro, denominado Bairro Alto, recém urbanizado, de ruas mais amplas que nos velhos bairros orientais, reunia muitas das casas de morada de carpinteiros e calafates.
O alargamento da malha urbana para poente reforçou a centralidade do sítio da Ribeira das Nuas e do paço que lhe era contíguo. E assim aparece na iconografia coeva, que sempre olhava Lisboa como cidade-estaleiro e porto marítimo. Um estaleiro para a construção de navios de grande porte destinados ao mar das Índia, paredes meias com o palácio real. Eis a imagem insofismável da sua singularidade.
Bibliografia:
CAETANO, Carlos (2005), A Ribeira de Lisboa na Época da Expansão Portuguesa (séculos XV a XVIII), Lisboa, Pandora. CASTILHO, Júlio (1893), A Ribeira de Lisboa. Descripção histórica da Margem do Tejo desde a Madre de Deus até Santo-o-Velho, Lisboa, Imprensa Nacional. COSTA, Leonor Freire (1997), Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa. A construção naval no século XVI para a Rota do Cabo, Lisboa, Patrimónia. SENOS, Nuno (2002), O Paço da Ribeira, Lisboa, Editorial Notícias.