Data de publicação
2009
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Em data que não se apura, após 1450, o 1º capitão e um dos líderes do povoamento da ilha Terceira, o flamengo Jácome de Bruges, ter-se-á fixado nas imediações daquela que hoje se constitui na cidade da Praia da Vitória. O primeiro povoado da zona nasceria no então designado Paúl de Beljardim, sensivelmente a meio da baía, entre a urbe actual e o Cabo da Praia. Segundo Frutuoso, na rememoração dos dizeres de mulher antiga, aquele teria constituído um dos dois primordiais centros de fixação da Terceira, quando a mesma ainda alcançava um número ínfimo de habitantes. A pequena deslocalização deste primitivo assento, no período em que a ilha de Jesus Cristo já se dividia em duas capitanias - Angra e Praia (1474) -, opera-se devido à menor adequação do 1º lugar escolhido para o efeito, em termos acesso marítimo e particularmente de defesa. A insegurança provocada pelos ataques castelhanos e, na respectiva sequência, o ataque à localidade em plena guerra de sucessão de Castela (1474-1479), registado por Frutuoso, emergem como factores decisivos para a decisão. É assim que em local mais eficaz sob o ponto de vista defensivo, mas também portuário, a fundação do povoado da Praia toma corpo, por iniciativa de D. Beatriz e por carta dirigida ao 1º capitão da Praia, Álvaro Martins Homem (1º do nome). Por transcrição de Frei Diogo das Chagas se conhece o registo das providências, pelo qual era tomada a terra de Sancha Rodrigues (mulher de Jácome de Bruges) para a elevação do povoado. A escolha do espaço de implantação é feita com o acordo entre o atrás referido 1º capitão e representantes do concelho, acordo assente em 6 de Setembro de 1482. Daqui relevam as datas primordiais do levantamento da povoação e, em simultâneo, da redefinição de um centro mais ajustado para o segundo concelho da ilha. Aliás, no quadro da criação das primeiras câmaras nos Açores, em que a cada sede de capitania correspondia uma sede de concelho, a da Praia só podia emergir como um dos mais precoces. Sem documento de criação que se conheça, este município enquadra-se, pois, nos mais antigos das ilhas e ainda em tempos da donataria. Em documento de 1488 a Praia é explicitamente designada como vila e, cerca de 1513, estaria concluída a implantação urbanística, com a respectiva muralha e vários portões de acesso. Por volta de 1717, o Pe Cordeiro descrevia essa muralha como tendo 4 baluartes e 4 portas, a do porto, a do rossio, a de Nossa Senhora dos Remédios e a das Chagas. Ainda segundo o mesmo cronista, também duzentos anos antes se ultimara a construção do porto e desembarcadouro que Frutuoso no seu tempo distinguia pela qualidade, referenciava no número de entradas e saídas e fazia antever na dinâmica da respectiva alfândega. Para além do mais, o convento feminino de Nossa Senhora da Luz, o mais antigo convento de freiras conhecido nos Açores (década de 80 de mil e quatrocentos), o convento de São Francisco (década de 90 do século XV), o Hospital de Santo Espírito que fontes coevas atestam em 1499 e onde em 1521 por aval régio surgia a confraria da Misericórdia, a igreja Matriz de invocação a Santa Cruz, solenemente sagrada em 1517 e que hoje numa estrutura setecentista conserva múltiplos elementos do manuelino e um portal axial tardo-gótico em pedra importada, a que acresce o convento feminino de Jesus (1532-1536), o recolhimento das Chagas, o hospital de lázaros nas imediações, 13 ermidas, 6 chafarizes e inúmeros poços privados contabilizados em finais de quinhentos (Frutuoso), confirmam o período de desenvolvimento e prosperidade que a Praia viveu nos finais do século XV e no século XVI. Para mais, os elevados rendimentos da redízima e do dízimo, associados às infra-estruturas moageiras da capitania, contabilizados já em 1533-1537, confirmam esse período áureo de abundância e riqueza em que muitos proprietários faziam armazenar, em plena vila, nos seus granéis e lojas, o produto das rendas que depois os comerciantes de grosso trato embarcavam para outros pontos e paragens. De qualquer modo, a primitiva estrutura do núcleo, nascida do desenvolvimento descrito, contou com vários edifícios públicos muito juntos à orla marítima, orla essa demasiado instável e sujeita a intempéries sucessivas, como a que se veio a verificar particularmente em 1676. Entre as referidas edificações estava a citada muralha defensiva, prolongada pela baía a partir do plano de defesa da ilha de 1567, e os conventos de São Francisco, da Luz e das Chagas. A primeira, sorvedouro de recursos e esforços por muitos anos, foi ruindo na medida do avanço incontrolável do mar, para apenas hoje se testemunhar a preceito no forte de Santa Catarina no Cabo da Praia. Os segundos foram no século XVII transferidos para lugar mais seguro, dos quais também pouco mais temos do que vestígios. Por tudo isto, a reconstituição da estrutura urbana original está muito condicionada. A Praia hodierna apresenta, de forma simplificada, uma malha urbana irradiante, ou planta em forma de leque, no qual um conjunto múltiplo de ruas diverge em direcção ao mar. Neste traçado, segundo José Manuel Fernandes, destacam-se 3 sectores fundamentais: o do eixo central ou espaço "fundador" da urbe, com uma primeira linha de arruamento que atravessa a Praça central da Câmara e desemboca no Largo São João de Deus e uma segunda linha que passa o adro e rua da Matriz até ao Convento de São Francisco (2º convento); outro sector que traduz um modelo irradiante de formação sucessiva, possivelmente configurador da primeira área de expansão da urbe, com malha mais densa e ruas mais estreitas e onde se podem destacar as ruas da Misericórdia e da Alfândega, por exemplo, naturalmente ligadas tanto à Câmara como à Matriz; por fim outro sector, com estrutura reticulada, a poente da Matriz e da Câmara, personificando o crescimento posterior dos séculos XVII/XVIII, com quarteirões maiores, pontilhados pelos vários conventos e mosteiros e cuja via central terá sido a Rua Nova ou Rua de Jesus. Mas se o avanço do mar condiciona a cabal reconstituição da estrutura urbana original, outros fenómenos naturais participaram nas várias metamorfoses físicas e humanas vivenciadas pela Praia. As crises sísmicas provocadas pelo afundamento do graben das Lajes, como as 1614 e de 1841, originaram a quase destruição da então vila e a eminência do seu despovoamento ou redução a simples lugarejo. Conhecidas por cahidas ou quedas da Praia, da vila e das respectivas freguesias circundantes, resultaram no desabamento parcial ou total e quase generalizado de casas privadas, edifícios públicos e fortificações. Os actuais paços do concelho, ex-libris da cidade, foram erigidos após o sismo de 1614, em área mais afastada do litoral relativamente ao primitivo, tal como os conventos de São Francisco, de Jesus e o da Luz, este último muito também por força da enchente de 1676. A alfândega, cujo edifício original recua a 1634, constitui uma reedificação confirmada por relatório de 1844. No mesmo documento ainda constam reparados a igreja matriz, o hospital da misericórdia, os paços do concelho, a cadeia, os aquedutos de água e o cemitério. Em estado de ruína permaneciam o hospital da Luz, o dos Lázaros, as ermidas dos Remédios e de Santo Amaro, toda a linha de fortificação e o cais. Ultrapassar estes eventos implicou um esforço de reconstrução dispendioso, penoso, árduo e lento, organizado por uma figura marcante na Praia, o Administrador Geral José Silvestre Ribeiro, rememorado em monumento camarário de 1879. Para mais, o medo provocado pelos eventos, tanto de 1614 como de 1841, criou processos de deslocação para outros centros urbanos e muita vontade de partir definitivamente. Só o empenhamento das autoridades, os donativos, as subscrições e algumas imposições sobre as ilhas conseguiram suster e quiçá inverter as tendências. Assim, em termos populacionais, a vila e os seus termos conseguiram sempre renovar-se nos respectivos contingentes. A capitania, de que até 1766 a Praia foi sede, ultrapassava os 700 vizinhos em finais do século XVI (Frutuoso) e, em inícios de setecentos, dos acima de 1200 vizinhos mais de 500 viviam no interior das muralhas que amparavam a vila (Pe Cordeiro). E tais contingentes humanos continuaram a permitir à Praia vários outros protagonismos na história açórica e nacional. As suas milícias, nascidas da organização militar da sociedade determinada pelas leis sebásticas de 1567, ainda na senda de uma construção defensiva mais consistente no quadro do monopólio ultramarino, foram sempre uma força a ter em conta nos sucessivos protagonismos políticos da ilha Terceira e da história nacional. No quadro da resistência ao domínio filipino que a ilha protagonizou até ao ano de 1583, acolheu D. António, Prior do Crato, pese embora a respectiva aclamação na câmara tenha sido menos espontânea do que se "constrói". Neste propósito, acabaram também por ser as suas bem organizadas milícias, conduzidas por Ciprião de Figueiredo, que, por certo tempo, garantiram as fidelidades da câmara, dos capitães e das elites locais. Na conquista filipina da ilha, ataques simulados à Praia foram perpetrados pelo Marquês de Santa Cruz para desviar os opositores do lugar do desembarque: a baía das Mós. Com a reviravolta política da Restauração, a Praia sobe de novo ao palco sob a liderança de Francisco Ornelas da Câmara, ensaia a aclamação a D. João IV, em 24 de Março de 1641, e dela se parte para cercar o imponente baluarte militar espanhol de Angra, o forte de São Filipe (depois São João Baptista). Chamada hoje "Praia da Vitória" por virtude da batalha de 11 de Agosto de 1829, foi elevada a cidade pelo Decreto Regional de 20 de Junho de 1981.

Bibliografia:
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