Data de publicação
2011
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A Medicina representa, no contexto da Expansão Portuguesa, um capítulo importante que se relaciona principalmente com o conceito de viagem e a circulação do saber. De facto, a viagem da Expansão, a da descoberta, foi o veículo de uma nova situação política, estratégica, económica e social, de abertura para o novo mundo mas foi também o veículo para outros conhecimentos científicos.

As viagens da Expansão foram também o veículo para uma ideologia de coragem, expressa na cultura e na mentalidade portuguesas. Esta ideologia, muito marcante na memória colectiva, ligou-se aos homens que viveram o tempo e que viveram as viagens dos Descobrimentos, cujas repercussões se sentiram num aspecto ancestralmente importante para a vida humana - a saúde.

Assim, no campo médico, a viagem e a circulação do conhecimento médico despertaram o interesse de historiadores, nomeadamente os da Medicina e médicos como Ricardo Jorge (1858-1939), que se dedicou ao tema Egas Moniz (1874-1955), para quem a epopeia dos Descobrimentos foi uma marcada referência cultural.

A viagem e seus aspectos, a circulação de novos recursos terapêuticos e a implementação do saber médico português nos territórios ultramarinos são os aspectos mais significativos da Medicina dos Descobrimentos.

A viagem, que tem como exemplo emblemático a carreira da Índia, não era fácil. Antes do seu começo, os embarcadiços eram sujeitos a um exame médico que verificava as condições de saúde, ignorando muito possivelmente doenças já presentes que facilmente eram levadas para a viagem. Nada preparava o homem para as vicissitudes daquele percurso e se para o destino viajavam patologias portuguesas, do destino chegavam patologias exóticas, circulando, assim, a doença. Ao mesmo tempo, a ausência de vitaminas na dieta alimentar, nomeadamente a vitamina C, desenvolvia o escorbuto, imortalizado na obra camoniana, que degradava as tripulações. Só no século XVIII foi institucionalizada a toma de vitamina C pelos marinheiros americanos. A doença era desconhecida mas sabia-se que o repouso e os alimentos frescos melhoravam a patologia.

As condições sanitárias eram muito pobres, diminuindo a higiene pessoal e a higiene colectiva. Pragas de ratos, transmissores de doenças e de piolhos, infestavam tripulantes e respectivos colchões e dos últimos ainda se registariam queixas na viagem da Corte para o Brasil, em 1808. Os colchões, de palha, apesar de devidamente inventariados na lista de entradas das armadas, não providenciavam o descanso mais propício. Este não era facilitado nem pelo espaço nem pela qualidade do ambiente, dada a parca ventilação. Além disso, era preciso ainda aguentar as vicissitudes das condições climáticas que acompanhavam os percursos e que podiam oscilar entre tempestades e vagas de calor. O calor e a humidade potenciavam, naturalmente, a transmissão de doenças.

A dieta era composta por um conjunto de alimentos que eram embarcados na partida e que eram renovados nas escalas. Eram pensados para durar mas não para bem alimentar e de facto, a falta de produtos frescos e de água em condições era fatal para os distúrbios intestinais, provocando diarreias e infecções várias. Biscoito, vinho, frutos secos, leguminosas, carne e peixe seco ou pescado no mar, bem como carne embarcada em vivo, compunham a alimentação diária.

A par da alimentação, também o físico não chegava a todos. Era por norma privilégio do comandante da armada. Um barbeiro-cirurgião servia a sua função junto da população que enfrentava o mar, cortando cabelos, aparando barbas, arrancando dentes ou debelando abcessos. A botica de bordo, de menor ou maior dimensão, mediante o tamanho da armada, compunha-se de raízes, evitando bebidas espirituosas, panos para ligaduras e os instrumentos para a sangria, que era a cura mais frequente para todos os males. A par do escorbuto, verificavam-se, entre outras, febres, características do paludismo, epidemias de cólera e queimaduras solares, dada a exposição prolongada ao sol.

Para a assistência aos doentes foram-se fundando hospitais de apoio, o primeiro dos quais em Cabo Verde, datado do final do século XV. O movimento de criação hospitalar tinha um fundamento prático, de apoio à viagem e de apoio às comunidades locais mas acabou por ser crucial na implementação e divulgação de uma rede de conhecimento médico. A rede hospitalar, idealizada pelos portugueses e construída também pelas comunidades locais, ia de Belém do Pará, no Brasil, até Liampó, na China e foi enriquecida com a expansão de Misericórdias. A primeira, fundada em 1498 por D. Leonor (1458-1525), em Lisboa, representa ainda nos nossos dias um caso notável na história da assistência em Portugal.

A par dos hospitais, surgiram pontos de ensino médico, de que são exemplos de referência a Escola de Cirurgia da Bahia e a Escola Médico-cirúrgica de Nova Goa. A primeira, fundada em 1808 por D. João VI no contexto da transferência da Corte para o Brasil e a segunda, de fundação mais tardia, em 1842. Foi extinta apenas em 1968, tendo sido uma excepção nas reformas da República, em 1910, no âmbito das quais foi extinta a escola do Funchal e as Escolas Médico-cirúrgicas de Lisboa e do Porto ascenderam.

A circulação do saber médico fazia-se também pela circulação de figuras médicas. Garcia de Orta (1500-1568), partiu para a Índia e trabalhou no Hospital de Goa. Fez um levantamento botânico que deu origem a uma das obras de maior referência na História da Medicina portuguesa e europeia, os Colóquios dos Simples e Drogas e outras cousas da Índia. Tomé Pires (1465-1540), boticário, escreveu a Suma Oriental e descreveu as drogas asiáticas. Cristovão da Costa (1525-1593), também ligado à botânica, foi para a Índia como médico do 10º Vice-Rei, D. Luís de Athaíde e dessa experiência resultou o seu Tratado das drogas e medicinas das Índias Orientais. Conheceu Garcia de Orta e enriqueceu os seus Colóquios com correcções e iconografia. Referem-se assim os mais emblemáticos, a Medicina dos Descobrimentos fez-se de anónimos e de figuras não necessariamente ligadas à Medicina, como foi o caso do Padre Luis de Almeida (1525-1583), jesuíta que fez um trabalho notável no Japão. Desenvolveu uma leprosaria no Bungo, bem como um hospital e uma creche em Oita, de cujo projecto nasceu igualmente uma escola médica.

A Medicina da Expansão foi indubitavelmente importante na medida em que, de facto, encontrou caminhos e encontrou soluções. Ficaram particularmente ligadas ao período novas obras médicas, novos hospitais, novas doenças, novas escolas médicas mas ficou marcada pela importância da botânica, desde sempre ligada à História da Medicina.

À luz do que se passou noutros pontos europeus, nomeadamente em Itália e na Bélgica, onde a medicina medieval dava lugar a uma medicina renascentista, do esplendor da Anatomia, com figuras como Andreas Vesalius (1514-1564) e tantos outros de referência italiana, a Medicina portuguesa mantinha-se pouco inovadora. A Expansão trouxe-lhe novos conhecimentos, personalidades, desafios e um novo manancial terapêutico baseado em produtos botânicos e animais até então desconhecidos.

No século XVI, a Medicina portuguesa ficaria marcada por Amato Lusitano (1511-1568), que a par da descoberta das válvulas da veia ázigos, deixou escrita outra obra médica de referência europeia, as Centúrias de Curas Medicinais, um estudo de casos clínicos escrito fora de Portugal.

Bibliografia:
FRADA, João José Cúcio, "História, Medicina e Descobrimentos portugueses", Revista ICALP, VOL. 18, 1989. LUSITANO, Amato, Sete Centúrias de Curas Medicinais, 4 volumes, FCM/UNL, 1980. MENEZES, José de Vasconcellos e, Armadas Portuguesas - Hospitais no além-mar na época dos Descobrimentos, Academia de Marinha, Lisboa, 1993. MENEZES, José de Vasconcellos e, Armadas Portuguesas - Apoio sanitário na época dos Descobrimentos, Academia de Marinha, Lisboa, 1987. ORTA, Garcia de, Colloques des simples et des drogues de l´Inde, Tesaurus, Actes Sud, Paris, 2004. PINA, Luiz de, A Medicina portuguesa de além-mar no século XVI, Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1935.