Data de publicação
2009
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Embora seja certo que, desde mais recuados tempos, marinheiros e caminhantes por terra observassem com frequência o céu para orientar as suas derrotas e os seus trilhos, convencionou-se que a náutica só devia ser classificada de astronómica desde que os navegadores passaram a recorrer à prática da determinação de uma coordenada de qualquer astro em pleno mar. Aceite esta convenção, pode dizer-se que a náutica astronómica só apareceu no século XV, quando as viagens ao largo do Atlântico Norte forçaram pilotos ou marinheiros a recorrer a medidas de coordenadas de astros para, aproximadamente, se situarem dia a dia no decurso das demoradas viagens de retorno da costa da Guiné para a Europa. Esta prática passou, no entanto, por diversas fases, que é necessário ter em conta: 1) Inicialmente, os marinheiros limitaram-se a comparar a altura meridiana da Estrela Polar medida em viagem com a altura que de antemão sabiam ser atingida pela Estrele em dado lugar de referência; 2) Notando que a possibilidade de recorrer à altura meridiana daquela estrela limitava a aplicação do processo, os pilotos estabeleceram o princípio de comparar alturas da Polar em oito posições do sei círculo diurno aparente; daqui nasceram as chamadas «rodas», que indicam as coordenadas para essas posições em dado lugar; 3) Este recurso a várias alturas referentes a Lisboa, quando se comparavam as coordenadas medidas com a latitude atribuída à cidade teria permitido estabelecer regras em que se passou a obter a latitude do lugar a partir da altura; bastava que ao valor destas alturas, tomadas em cada um dos rumos regimentais, se adicionassem ou subtraíssem certas constantes, uma para cada altura tomada em posições determinadas (esses valores correctivos foram certamente obtidos pela diferença entre a latitude em Lisboa e o respectivo valor da coordenada); 4) A partir do início do último quartel do século XV, a latitude passou também a ser calculada com fundamento da altura meridiana do Sol e da declinação deste astro no dia de observação, procedimento que se radicava em regras medievais, incluídas em diversos tratados sobre a construção e uso do astrolábio; para este fim foram preparadas tábuas das declinações solares, inicialmente um grosseira tábua solar única e mais tarde, mas ainda no século XV, as mais perfeitas tábuas quadrienais das declinações solares, de que há resíduos no Livro de Marinharia de André Pires; 5) A navegação no hemisfério sul, a partir de c. 1470, levou, porém os pilotos e os navegadores a substituírem a Estrela Polar, que já não podiam observar, por outra estrela; depois de várias tentativas, escolheram a =537; Crucis, ou Estrela do Pé do Cruzeiro, como então se dizia, para, a partir dela, chegarem à latitude; convém acrescentar que, de início, apenas recorreram, e acertadamente, à passagem superior meridiana da estrela, estabelecendo o chamado «Regimento do Cruzeiro do Sul»; quando quiseram usar também oito posições da estrela no seu movimento aparente, erraram de maneira inaceitável as regras estabelecidas por comparação gratuita com o «Regimento Norte»; 6) Só no século XVI, segundo parece, os pilotos e marinheiros se deram conta de que podiam praticamente recorrer à altura meridiana de qualquer estrela de declinação conhecida para inferir dela a latitude; a prática estava já aconselhada em um texto antigo incluído no Reportório dos Tempos de Valentim Fernandes (edição de 1563), mas é duvidoso que antes de João de Lisboa tenha sido posta em prática; este piloto, no Livro de Marinharia, que lhe é atribuído, alude a seis estrelas que podiam ser usadas com esse fim, mas o número já é consideravelmente alargado no texto manuscrito do cosmógrafo Manuel Lindo (antes de 1550) e continuaria a sê-lo em outros textos de autores mais ligados à prática da náutica, nomeadamente nos de João Baptista Lavanha; no Regimento Náutico, que este cosmógrafo-mor publicou em 1595, além de uma lista de estrelas, vêm regras que pautariam o procedimento a seguir para a obtenção de latitudes com as alturas meridianas de todas elas; 7) Além disso, nos pequenos tratados anexos ao seu Tratado da Esfera, Pedro Nunes ensina a obter a latitude, sobre a poma, a partir de duas alturas extrameridianas do Sol e dos azimutes magnéticos da observação, processo de que, aliás, Manuel Lindo reivindicaria a autoria; D. João de Castro pôs em prática este procedimento aconselhado por Pedro Nunes, mas não temos notícia de que mais algum navegador o tenha submetido à prova experimental.

Artigo originalmente publicado no Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, dir. Luís de Albuquerque, e reproduzido por cortesia do Círculo de Leitores