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2013
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Entre Junho e Agosto de 1515, a expedição da Mamora procurou construir uma nova fortaleza que fizesse a ponte entre Arzila e Azamor e fosse o início de uma nova cruzada portuguesa no Magrebe.

A expedição surgiu no âmbito do projecto que D. Manuel I (1495-1521) acalentava desde a sua subida ao trono: a conquista dos reinos de Fez e Marráquexe. Assim, após a captura de Azamor por D. Jaime de Bragança, em 1513, o rei português, em Setembro do mesmo ano, procurou o apoio da Santa Sé no financiamento de uma nova cruzada. O papa Leão X (1513-21) deixou-se convencer e concedeu 2/9 dos rendimentos eclesiásticos acima dos 50 mil ducados com três bulas a 29 de Abril de 1514. Isto suscitou a oposição dos prelados portugueses, que só foram definitivamente intimados a obedecer pelo legado, a 2 de Abril de 1515, fazendo assim perigar a preparação do empreendimento.

As preparações não deixaram de prosseguir, todavia, e em Outubro de 1514 decidiu-se começar a cruzada com construção de uma vila no rio Cebu, após uma expedição que em Setembro explorara o local. Esta decisão ia um pouco contra o plano inicial do rei, que a aceitou na condição de que a armada procedesse depois à construção de uma fortaleza em Anafé. A 6 de Junho de 1515 já estava definido como capitão-mor da armada D. António de Noronha, irmão do marquês de Vila Real.

A entrega do comando a um membro da Casa de Vila Real seria uma tentativa de apaziguar as tensões existentes com o marquês, que ao ver a Casa sofrer um acrescentamento moderado, afastou-se gradualmente do rei: o golpe final ocorrera quando fora atribuído o título de conde a D. Martinho de Castelo Branco, em detrimento do próprio D. António. Apesar disso, este último encontrava-se próximo do monarca, sendo provido, em 1503, no ofício de escrivão da puridade aquando do seu casamento com a filha do conde de Portalegre. Quanto ao teatro ultramarino, para além de capitanear a expedição de 1515, D. António participou na assinatura no tratado de Sintra, de 1509, onde Portugal e Castela demarcaram as suas áreas de conquista no Norte de África e exerceu a capitania de Ceuta entre 1487-90. A entrega do comando ao Noronha podia assim, estar relacionada com as tensões na corte: em 1513 fora honrada a casa de Bragança, agora era a vez da casa de Vila Real, sua rival.

Dentro dos “elementos notáveis” que o cronista Damião de Góis refere, podemos ainda evidenciar o mestre Diogo Butaca e D. Álvaro de Noronha. O primeiro, estando presente em Arzila entre 1510-11 e sendo responsável por medir e avaliar as fortalezas de Alcácer Ceguer, Tânger, Ceuta e Arzila, em 1514, teria já bastante experiência em terras e fortalezas marroquinas. Quanto a D. Álvaro de Noronha, neto de D. Pedro de Noronha, arcebispo de Lisboa (1432-52) e primo em 2º grau de D. António de Noronha, também não era um estreante em matérias ultramarinas: para além de ter estado ao serviço de D. Francisco de Almeida (1ºvice-Rei da Índia), participara na expedição a Azamor de 1513.

A partida da armada deu-se a 13 de Junho de 1515, com o estandarte a ser entregue num ambiente mais íntimo do que o de 1513, devido às tensões entre a Coroa e os bispos Quanto aos números da armada, seguindo Damião de Góis, Bernardo Rodrigues, Gaspar Correia e o autor anónimo da Relação da Mamora, estes estariam perto dos 8.000 soldados (2.000 a cavalo), num possível total de 12.00, incluindo: oficiais de construção, marinheiros e futuros moradores (com mulheres e crianças). Para o seu transporte foi preparada uma frota de 200 velas, com a maioria a partir de Lisboa no dito dia 13, juntando-se depois no dia 20 às embarcações comandadas por D. Álvaro de Noronha, ao largo de Faro. A chegada ao rio Cebu deu-se na noite de 23 de Junho, sendo logo escolhido o local da construção: a cerca de meia légua da foz, junto ao leito, com fontes de água e uma pedreira.

A construção da vila de São João da Mamora, iniciada a 24 de Junho, provocou alguns desentendimentos quanto ao local escolhido: ficava numa várzea onde terminava uma ladeira que começava num alto outeiro. Vários mouros da região teriam avisado que a várzea ficaria coberta pelas cheias. Mas, apesar do parecer contra de alguns elementos da armada, D. António e a maioria do seu conselho decidiram que quando chegassem as cheias já o forte estaria adiantado o suficiente para lhes fazer frente.

As obras pareceram então decorrer a bom ritmo. Contudo, as facilidades não se mantiveram e, cerca de um mês depois da chegada da armada, a presença militar moura seria já notória. A 19 de Julho, o rei foi informado que uma caravela atracada em Portimão dava notícias da presença de artilharia moura junto à Mamora. Os mouros liderados por Mulei Nasser, vice-rei de Mequinez, cresciam mesmo a cada dia, atingindo os 3.000 cavaleiros e 30.000 peões. Percebendo que a força dos Portugueses estava na sua frota, Nasser colocou junto à entrada do rio uma bateria de seis bombardas, que alvejava qualquer embarcação que tentasse circular entre a fortaleza e a armada, isolando a vila. Para piorar a situação, o local escolhido para a construção revelou-se uma armadilha, já que o vice-rei colocou as suas forças no cimo da ladeira, de onde os seus homens conseguiam alvejar o próprio interior da vila.

Foram então feitas várias tentativas para desalojar os mouros das suas posições. Numa, a 22 de Julho, 3-4.000 homens subiram a ladeira e apoderaram-se das bombardas inimigas. Contudo, ignorando as ordens dos capitães, os soldados terão continuado o seu avanço, agora ao longo do rio de modo a atacar outras posições de artilharia, ficando vulneráveis ao contra-ataque dos mouros. Foram assim forçados a retirar de forma descontrolada, obrigado mesmo António Saldanha, a cancelar um ataque previsto às baterias na foz para resgatar alguns fugitivos. Perderam-se pelo menos 1.200 homens.

Quanto à bateria moura junto à foz, D. António de Noronha ordenou o abastecimento e reforço de uma nau que, colocada na foz, recebesse e respondesse ao fogo mouro, permitindo a passagem de outras embarcações. Tal iniciativa teve sucesso momentâneo, conseguindo mesmo desalojar os mouros do local e assim aliviar um pouco o cerco à fortaleza. Contudo, com o passar dos dias, a situação voltou a piorar e com os mouros a regressarem e a fortificarem a sua posição, a nau acabou por ser afundada. Segundo Damião de Góis, o afundamento da nau foi o golpe final na esperança da maioria dos membros da expedição, que pediam agora a retirada da armada.

As vozes dissonantes na armada teriam, assim, começado a aumentar e, a 30 de Julho, D. António de Noronha parecia já algo fragilizado na carta que enviou ao rei. Tentando defender-se, o capitão-mor informava que os pilotos e marinheiros lhe tinham assegurado que não seria possível a nenhuma força bloquear a barra do rio; referia que tinha tentado defender as posições portuguesas com a já referida nau e afirmava que a fortaleza estaria mesmo assim quase finalizada. Afirmava ainda que o seu comando estaria ameaçado por alguns elementos: D. Álvaro de Noronha, capitão da fortaleza, informara que alguns dos que tinham jurado ficar se recusavam agora a fazê-lo. Face à difícil situação propõs ao rei duas opções: o envio de reforços para que se construísse uma torre na foz do rio ou a preparação de uma armada para tomar Salé enquanto Mulei Nasser estivesse a cercar a Mamora.

No dia seguinte surgiu uma carta de Diogo de Medina, uma das vozes dissonantes, onde este afirmava que o local da construção fora mal escolhido, acusando D. António, D. Álvaro e outros fidalgos de o terem ignorado e mesmo desrespeitado. Quando dera a sua opinião sobre o assunto, afirmando que o local estava subjugado por montanhas, D. Álvaro tê-lo-ia mandado calar-se, pois estando ali o mestre Butaca a sua opinião não seria necessária.

A 4 de Agosto, Garcia de Melo, enviado ao local pelo rei, defendia que a Mamora era de maior importância que Salé, devendo o monarca enviar reforços. No mesmo dia, D. António de Noronha enviou duas cartas mudando a proposta que fizera para nova armada, alterando o objectivo para Anafé, e voltando a defender a sua posição: a fortaleza está feita pelo que devia ser mantida através de nova armada. Caso não fosse possível, o rei deveria deixar a fortaleza bem guarnecida com 800 homens (D. Álvaro pedia 1.200). Com D. Álvaro, a mostrar algum receio em ficar como capitão, D. António propõs ainda ao rei escolher um substituto entre os capitães da armada.

Mas os desentendimentos na expedição eram já elevados, tendo-se formado mesmo a discórdia entre o comandante da armada e o capitão da fortaleza. Assim, dia 5 de Agosto foi o próprio D. Álvaro de Noronha que, escrevendo e informando o rei sobre a largura da barra do rio, bloqueada pelo rei de Fez, defendeu que a fortaleza da Mamora devia ser socorrida e abandonada, vindo confirmar a ideia de que se recusava a ficar como capitão da nova fortaleza.

Poderá ter sido esta a carta que levou D. Manuel I a decidir-se pela retirada da armada e o abandono total da fortaleza. Esta manobra, que se realizou a 10 de Agosto, revelou-se desastrosa, com os mouros a matarem muitos em terra e com as baterias a afundarem muitos dos navios que precipitadamente e sem ordem tentavam sair do rio (muitos simplesmente chocavam ou encalhavam nas margens ou leito), ascendendo no fim as baixas a cerca de 4 mil, perdendo-se ainda metade da frota.

A falta de comando foi determinante para o fracasso da expedição, desde o erro na escolha do lugar, à perda da entrada do rio, até ao comando das forças em combate, sendo assim, o principal culpado o próprio capitão-mor que, já na retirada, mais preocupado em salvar os navios, teria deixado apenas algumas caravelas para recolherem as pessoas. De regresso ao Reino, derrotado e humilhado, culpando o tempo e má fortuna D. António seria ainda assim recebido com paciência e compreensão por parte do rei que, face ao maior “desastre militar” do seu reinado, tem de cancelar o plano de cruzada que acalentara para todo o ano de 1515.

Bibliografia:
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