Data de publicação
2009
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Área Geográfica
A figura de D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas facilmente se associa a bibliotecas, a livros e à construção duma ideia de património e de identidade portugueses, mas o conhecimento e análise do seu perfil de erudito pode colocá-lo entre as personalidades que mais contribuíram para a divulgação do espírito das Luzes em Portugal. Acompanhar a sua actividade como homem da Igreja, intelectual e pedagogo ajudam a compreender a sua personalidade no contexto da mudança setecentista em curso. Começando pela formação, importa destacar dois períodos. Muito novo, começa a sua educação com os Oratorianos (1737-1740), depois com a Ordem Terceira de S. Francisco (1740-1746) e finalmente na Universidade de Coimbra na qual, aos vinte e dois anos, acumula funções docentes com a situação de discente. Aos vinte cinco, doutora-se em Teologia na mesma Universidade. Para além da preparação em matéria religiosa e doutrinária, dedica-se ao estudo das línguas antigas clássicas (latim e grego) e também orientais (hebraico). As suas preocupações filosóficas e pedagógicas identificam-no então com a corrente escolástica da época a qual privilegia o ensino teórico, distante do real, baseado na verdade indiscutível da palavra divina. Cenáculo acumula leituras, conhecimento e vasta argumentação mas a inquietação e insatisfação manifestadas vão no sentido de reforçar a ordem académica e religiosa vigente com a qual se identificava. Momento decisivo na formação intelectual de Cenáculo acontece com a viagem a Roma em 1750 à época do Papa Bento XIV para participar no Capítulo Geral da Ordem Terceira, reunião magna dos Franciscanos, integrando uma delegação composta por Frei Joaquim de S. José, Provincial da Ordem Terceira, por Frei Domingos da Encarnação e por ele próprio. A viagem, por terra, propiciou o contacto com bibliotecas, universidades, monumentos e eruditos, contactos que o terão influenciado profundamente (SALGADO 1790 : 43 e segs.). Por mais conservadora que a Igreja fosse, a obra, as interrogações e as novas perspectivas lançadas por filósofos, matemáticos ou naturalistas varriam a Europa setecentista e dificilmente podiam ser ignoradas havendo de desembocar em novas formas de pensar e noutra mundividência. Depois de Roma, Frei Manuel do Cenáculo continua a apetrechar-se com leituras e informação que o tornam uma referência no círculo político e intelectual português. As sucessivas nomeações por parte de D. José I e do seu Ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, constituem provas irrefutáveis sobre a confiança que nele era depositada: Presidente da Real Mesa Censória, Membro da Junta de Providência Literária, Bispo de Beja e Preceptor do Príncipe Herdeiro D. José, Príncipe da Beira (1770), participação na organização do ensino através da Real Mesa Censória (1771), Presidente da Junta do Subsídio Literário e mentor da Reforma da Universidade de Coimbra (1772), dinamizador do projecto de reconstrução da Real Biblioteca Pública (1775). Os ventos de mudança na Europa impõem as matérias físico-matemáticas, as ciências da natureza, a aceitação do racional sobre o dogmático, do real e experimental sobre a palavra divina. Nem todos aceitam este terramoto intelectual mas Cenáculo, mais questionador e mais esclarecido, adere à nova corrente e com Pombal, político muito empenhado no fortalecimento do poder real em ruptura com a poderosa influência tradicional da Igreja na qual os Jesuítas detêm lugar preponderante, consegue implementar a nova postura que exige profundos conhecimentos teóricos, larga erudição e sólida argumentação.

Outras referências biográficas indispensáveis têm a ver com a contínua ascensão de Cenáculo na hierarquia da Igreja: em 1768 é nomeado Provincial da Ordem Terceira de S. Francisco, em 1770 é nomeado Bispo de Beja, cujo exercício inicia em 1777, e em 1802 é nomeado Arcebispo de Évora. Apesar do desaparecimento político do Marquês de Pombal após a morte de D. José (1777), o contacto entre os dois homens mantém-se, não afectando a posição destacada de Cenáculo e proporcionando-lhe a realização prática do ideário das Luzes. Apesar da sinergia entre os seus próprios ideais e os de Pombal, nunca Cenáculo se arvorou em acalorado defensor da intervenção do poder central junto da Igreja, não se empenhou no combate aos Jesuítas em nome duma nova visão governativa e, sendo regalista (isto é, defensor do poder real centralizado independente dos interesses da Igreja) aplicou-se em áreas tanto quanto possível fora da esfera política (na educação ou na criação de bibliotecas). As oportunidades no campo da pedagogia começam com a reforma do ensino na Ordem de S. Francisco (1769) a qual prenunciava a Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra (1772). Também a realização prática de alguns princípios das Luzes foram conseguidos beneficiando da sua posição como Presidente da Real Mesa Censória cuja actividade não se limitou à fiscalização sobre os livros a imprimir, no que substituiu o Santo Ofício, mas que se estendeu a um profundo trabalho no campo do ensino, actuando como verdadeiro "ministério da instrução pública" (MARCADÉ 1974: 607), dinamizando a abertura de escolas em zonas rurais, sobretudo no Sul do País, como exaustivamente identificou MARCADÉ (1978). A intervenção de Cenáculo como pedagogo revela de maneira clara a filosofia das Luzes que abraçou e que logrou transmitir quer ao próprio rei D. José quer ao Marquês de Pombal. Através da Real Mesa Censória, era a Igreja que continuava a definir o modelo de educação explorando a autonomia que tinha em relação ao poder político (O Marquês de Pombal 2000: 16). Para Cenáculo, a actividade pedagógica cobria tanto o conteúdo académico como a gestão do próprio ensino e ambos os aspectos deveriam pautar-se por um elevado nível de exigência. É o caso do Colégio Real dos Nobres, destinado a transmitir uma base sólida de conhecimentos aos nobres para que viessem a gerir melhor os seus bens, ou da Universidade de Coimbra, cuja remodelação foi das condições de acesso até à organização curricular, aos processos de avaliação do conhecimento, até ao estatuto e condição dos professores (O Marquês de Pombal 2000 : 43). Um conjunto de medidas que não acontecia para facilitar a aprendizagem mas para atingir a excelência. O ensino devia decorrer em diálogo: expor, ouvir e depois discutir; tudo deveria ser demonstrado. Cenáculo utilizava a infra-estrutura da Real Mesa Censória para prosseguir a tarefa de educar com um empenho revelador dos princípios das Luzes acreditando que pelo conhecimento e pela razão os povos ascenderiam a um patamar de verdade e felicidade. Grandes bibliotecas eruditas encontraram em Cenáculo um mecenas e um impulsionador quer através das suas doações (Real Biblioteca Pública, Bibliotecas Públicas de Évora e de Beja, Biblioteca do Convento de Jesus) quer através da sua contribuição na respectiva organização (Biblioteca da Academia das Ciências). Seleccionar, adquirir e reunir livros, como abundantemente testemunha a epistolografia, ou destiná-los para determinadas bibliotecas como fez com obras que passavam na Real Mesa Censória reflecte um espírito esclarecido e seguidor das Luzes. Uma atitude metódica, organizada do conhecimento (e pelo conhecimento) no prosseguimento dos objectivos da Encyclopédie de Diderot e D'Alembert publicada entre 1751-1755. Também uma vocação de coleccionador demonstrada com a vastíssima colecção de quadros, moedas, peças arqueológicas, mapas e cartas que reuniu. Não se tratava de reunir pelo acto em si, mas visando conseguir os elementos necessários para fazer prova, inculcando o "gosto pelo Real", como as Luzes preceituavam, em oposição a especulações metafísicas. A preocupação pela contínua instrução, a inquietação do saber novo, a permanente aquisição de livros personificam em Cenáculo o compromisso com as Luzes. Mas fica ainda por saber qual o verdadeiro motivo que o moveu como coleccionador, se uma interpretação do figurino setecentista ou, pelo contrário, se o "gosto pelo real" constituiria uma manifestação das suas preocupações em matéria de identificação do génio e singularidade portugueses entrando no domínio da construção da memória, um anúncio incipiente do romantismo. Um percurso de vida profundamente inovador, disponível para recusar modelos inadequados, como era o do ensino escolástico, e pioneiro na adopção de novas soluções. Como sumariamente o definiu CAEIRO (196? : 189) "Cenáculo…o homem da sua época por excelência".

Bibliografia:
CAEIRO, Francisco da Gama, "Cenáculo". in Os Grandes Portugueses. Dir. Hernâni Cidade. Lisboa : Arcádia, [196?], v. 2, p. 189-199. Frei Manuel do Cenáculo construtor de bibliotecas. Coord. Francisco A. Lourenço Vaz & José António Calixto. Casal de Cambra : Caleidoscópio, 2006, p. 47-55. MARCADÉ, Jacques, "D. Fr. Manuel do Cenáculo Vilas Boas (quelques notes sur sa pédagogie)". Arquivos do Centro Cultural Português, Paris, v. 8, 1974, p. 605-620. MARCADÉ, Jacques, Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas: Évèque de Beja, Archevêque d'Évora (1770-1814). Paris: Centro Cultural Português, 1978. 592 p. O Marquês de Pombal e a Universidade. Coord. Ana Cristina Araújo. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000. 315, [2] p., 9 il. SALGADO, Frei Vicente, Origem, e Progresso das Línguas Orientaes na Congregação da Terceira Ordem de Portugal. Lisboa: Na Offic. De Simão Thaddeo Ferreira. 93 p.