Data de publicação
2009
Categorias
Entradas associadas
Historiador, geógrafo, autor de importante obra doutrinária, pedagógica e gramatical e alto funcionário da coroa portuguesa no reinado de D. João III. Nascido provavelmente em Viseu, de família fidalga, ainda muito jovem entrou na corte régia onde, com outros moços-fidalgos, aprendeu latim, matemática e humanidades.
A Crónica do Imperador Clarimundo (1522), romance de cavalaria que exalta as origens imaginárias da casa real portuguesa, oferecida a D. Manuel em 1520, assinala a sua estreia como escritor. Nela, o herói Fanimor profetiza em prosa de aspiração épica as futuras glórias dos reis de Portugal. O Clarimundo constitui sobretudo um "ensaio" de João de Barros, nascido dois anos antes da chegada de Vasco da Gama à Índia, para aquele que já então era, inegavelmente, o seu verdadeiro projecto: a narração dos feitos dos portugueses no Oriente.
A Crónica agradou de tal forma a D. Manuel que o monarca quis encarregá-lo da escrita das "cousas das partes do Oriente", já que até então, apesar de querer celebrar os feitos portugueses, "nunca achara pessoa de que o confiasse" (Década I, "Prólogo"). A morte do rei veio interromper o projecto já que o novo soberano, D. João III, lhe concedeu, logo em 1522, o governo do Castelo da Mina, cargo que não terá chegado a exercer, embora talvez tenha viajado até S. Jorge.
Em 1525 Barros foi investido nas funções de tesoureiro das Casas da Índia, Mina e Ceuta, que exerceu até 1528, e em 1533 foi nomeado feitor da Casa da Índia, cargo de maior relevo e rendimento, que desempenhou durante cerca de trinta e cinco anos. Em 1535 recebeu, no quadro da política régia visando o povoamento e a colonização do Brasil, com Aires da Cunha, fidalgo com experiência do mar, e Fernão Álvares de Andrade, tesoureiro-mor do reino, a capitania relativa ao extenso território de costa que ia do Rio Grande ao Maranhão. Com a finalidade de tomarem posse da capitania, os três donatários organizaram em Lisboa uma expedição de grande aparato. A armada, que zarpou nos finais de 1535, acabou por naufragar perto do Maranhão, facto que constituiu, para lá dos aspectos dramáticos de que se revestiu, um desastre financeiro do qual João de Barros nunca se recompôs. Foi depois deste episódio que Barros se ofereceu a D. João III para "escrever as cousas da Índia".
Funcionário destacado da administração régia durante mais de trinta anos, João de Barros manteve uma intensa actividade como escritor. Com uma sólida formação humanista e uma amplíssima erudição, ao mesmo tempo que ia concebendo e escrevendo a sua obra historiográfica, Barros publicou em 1532 a erasmizante Ropicapnefma (que em português significa "Mercadoria Espiritual"), escreveu, além de algumas que em definitivo se perderam, um notável conjunto de obras de carácter gramatical, pedagógico e didáctico que publicou nos anos de 1539 e 1540, com destaque para a Gramática da Língua Portuguesa, compôs c. 1543 o Diálogo Evangélico sobre os Artigos da Fé, contra o Talmud dos Judeus, cuja publicação foi proibida pela Inquisição. Em 1567 renunciou ao cargo de feitor da Casa da Índia, retirando-se para a sua quinta da Ribeira de Litém, perto de Pombal. Morreu em Outubro de 1570.
Foi como historiador que João de Barros ganhou maior projecção. Projecto de uma vida, a Ásia constitui a "coroa de glória" da sua actividade como escritor. Dividida em décadas segundo o modelo do historiador romano Tito Lívio, a Ásia era uma das componentes de uma obra monumental, concebida em três partes: a Conquista, sobre os feitos militares portugueses nos quatro continentes: Europa, desde os Romanos, África, desde a tomada de Ceuta, Ásia, desde o Infante D. Henrique, e Brasil, a partir do descobrimento em 1500; a Navegação, que consistiria numa "universal geografia de todo o descoberto"; e o Comércio, em que se faria a descrição de todos os produtos naturais e "artificiais" "de que os homens têm uso", pesos e medidas, preços e trocas à escala mundial. Projecto à escala planetária, de que só conhecemos uma ínfima parte, relativa à "milícia" da Ásia. Sabe-se que a Geografia e o Comércio foram em grande parte escritos, embora se tenham perdido, acabando Barros por desistir de escrever as partes relativas à Europa e à África.
Com excepção das viagens à Mina e ao Brasil, e ao contrário de outros historiadores como Gaspar Correia, Fernão Lopes de Castanheda ou Diogo do Couto, João de Barros nunca saiu do Reino e não conheceu o Oriente. Como feitor da Casa da Índia, teve acesso directo e privilegiado às informações dos sucessos políticos, militares e marítimos, por vezes da boca dos próprios protagonistas. Pela sua mão passavam regimentos, roteiros, relações, cartas e negócios de África e do Oriente. A realização da sua obra historiográfica articula-se, pois, com a sua carreira de funcionário. Para escrever a Ásia João de Barros não se limitou às fontes portuguesas, ao seu vasto conhecimento dos escritores greco-latinos e aos muitos autores cristãos que, desde Marco Polo, escreveram sobre as coisas orientais. Procurou documentar-se sobre a história do Oriente a partir de fontes próprias, que com frequência refere ao longo das Décadas. Teve conhecimento, por exemplo, das crónicas dos reis de Quíloa, Ormuz, Guzarate ou Bisnaga, refere o Lorigh ou Tarigh, espécie de sumário dos reis da Pérsia, "o qual temos em nosso poder em língua persiana" (I, liv. 1, cap. 1), sobre a China utilizou, na sua perdida Geografia, um livro de cosmografia "que nos foi de lá trazido e interpretado por um chim que para isso houvemos" (I, liv. 9, cap. 1,2,3).
A publicação das Décadas da Ásia seguiu um ritmo descontínuo. A Década I foi impressa em 1552 e a II em 1553, mas a III só foi publicada em 1563. A IV, depois de um destino acidentado dos papéis do historiador após a sua morte, foi editada em 1615, reformada e acrescentada por João Baptista Lavanha. Diogo do Couto, guarda-mor do Tombo de Goa, historiador oficial, foi o prolífico continuador das Décadas. No Soldado Prático (ed. 1790), Couto traça o retrato da decadência do império português, fazendo perfilar a face sombria de uma expansão cuja dimensão gloriosa, fixada em termos historiográficos nas Décadas de Barros, veio a encontrar a sua expressão maior no poema épico de Luís de Camões, Os Lusíadas, publicado em 1572.
Historiador dos feitos do Oriente, amigo e panegirista de D. João III, distinguido pelo monarca com mercês várias e cargos de relevo na administração, João de Barros foi um dos expoentes e um dos porta-vozes destacados da ideologia expansionista da coroa portuguesa no século XVI. A sua concepção da história, servida por um inequívoco rigor documental, por uma vasta erudição e por uma língua grave e majestosa, reflecte a prudência do cortesão que serve o seu rei, mas também a noção humanista da necessidade da glorificação dos heróis. A exaltação dos protagonistas do império, como Vasco da Gama, Francisco de Almeida ou Afonso de Albuquerque, não permitia referências a episódios perturbadores da sua dignidade de heróis. Barros omite, por exemplo, a tentativa de sublevação ocorrida na primeira viagem de Vasco da Gama, silencia os actos de crueldade de Afonso de Albuquerque para com as populações vencidas, cala as divergências entre o vice-rei, Francisco de Almeida, e Afonso de Albuquerque, "por não macular uma escritura de tão ilustres feitos com ódios, invejas, cobiças e outras cousas de tão mau nome"( II, liv.3, cap.9). Por outro lado, a guerra contra os muçulmanos e a defesa e a expansão da fé cristã nos confins do Oriente concebiam-se como a continuação, num outro espaço geográfico, de um confronto multissecular cujo palco privilegiado fora a Espanha e a África. Também para Barros a "guerra justa" era a única guerra legítima, e por isso incitava D. João III a fazer "guerra aos infiéis e mouros de África; e, movido do santíssimo zelo, converta Etiópia e Arábia, Pérsia e Índia à verdadeira fé de Cristo [...] porque esta [guerra], sendo justa, é proveitosa e traz grande louvor ao rei cristão."
Sob um outro ponto de vista, contudo, são notáveis e precursoras a atenção e a sensibilidade antropológica do historiador na descrição dos amplos quadros geográficos e civilizacionais do Oriente, e indiscutível a sua capacidade em descrever o outro com a especificidade própria da sua cultura e dos seus sistemas sociais - como a chegada de Diogo de Azambuja à Guiné e o seu encontro com o régulo Caramansa, os encontros de Vasco da Gama com o catual e com o samorim de Calecute, a descrição do reino da China. Esta atenção e esta capacidade, inscritas num olhar concebido à escala planetária, acabam por convergir na perturbadora revelação, para o europeu do século XVI, como era Barros, da relatividade das civilizações. O caso da China é exemplar. O amplo espaço concedido por João de Barros à descrição do colossal império não deixa dúvidas quanto à admiração do historiador por uma civilização requintada e, em muitos aspectos, superior. Na sua pormenorizada e entusiástica descrição, que contempla elementos relativos ao quadro geográfico, à organização política e administrativa e à economia, Barros destaca o requinte da cultura chinesa, na qual se reuniam - supremo elogio do homem culto de Quinhentos - "todas as cousas de que são louvados Gregos e Latinos"(III, liv. 2, cap. 7).
Revelam-se aliás notáveis e surpreendentemente modernas algumas linhas-de-força do seu edifício historiográfico. A concepção planetária, em que sobreleva a importância dada aos quadros geográficos na sua articulação com a história, o destaque conferido à economia e às grandes rotas comerciais, a atenção à diversidade de culturas, instituições e sistemas sociais apesar do pressuposto eurocêntrico e do comprometimento ideológico, são alguns dos traços que fazem de João de Barros, indiscutivelmente, um dos grandes nomes da historiografia portuguesa e da Europa do Renascimento.
Bibliografia:
BAIÃO, António, "Documentos inéditos sobre João de Barros, sobre o escritor seu homónimo contemporâneo, sobre a família do historiador e sobre os continuadores das suas 'Décadas'", Boletim da Segunda Classe da Academia das Sciencias de Lisboa, vol. XL, 1917, pp.202-355. BARROS, João de, Ásia de Joam de Barros. Dos Feitos que os Portugueses fizeram no Descobrimento e Conquista dos Mares e Terras do Oriente. Primeira Decada, 4ª edição revista e prefaciada por António Baião conforme a edição princeps, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932. BARROS, João de, Gramática da Língua Portuguesa. Cartinha, Gramática, Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem e Diálogo da Viciosa Vergonha, reprodução facsimilada, leitura, introdução e anotações por Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, 1971. BUESCU, Ana Isabel, "A Ásia de João de Barros. Um projecto de celebração imperial", D. João III e o Império. Actas do Congresso Internacional Comemorativo do seu Nascimento (Lisboa e Tomar, 4 a 8 de Junho de 2002), ed. dirigida por Roberto Carneiro e Artur Teodoro de Matos, Lisboa, CHAM e CEPCEP, 2004, pp. 57-74. FARIA, Manuel Severim de, "Vida de João de Barros", Discursos Vários Políticos, Évora, Manuel Carvalho, 1624. SARAIVA, António José, "Uma concepção planetária da história em João de Barros", in Para a História da Cultural em Portugal, 5ª edição, vol. II, Lisboa, Livraria Bertrand, 1982, pp.263-283.
A Crónica do Imperador Clarimundo (1522), romance de cavalaria que exalta as origens imaginárias da casa real portuguesa, oferecida a D. Manuel em 1520, assinala a sua estreia como escritor. Nela, o herói Fanimor profetiza em prosa de aspiração épica as futuras glórias dos reis de Portugal. O Clarimundo constitui sobretudo um "ensaio" de João de Barros, nascido dois anos antes da chegada de Vasco da Gama à Índia, para aquele que já então era, inegavelmente, o seu verdadeiro projecto: a narração dos feitos dos portugueses no Oriente.
A Crónica agradou de tal forma a D. Manuel que o monarca quis encarregá-lo da escrita das "cousas das partes do Oriente", já que até então, apesar de querer celebrar os feitos portugueses, "nunca achara pessoa de que o confiasse" (Década I, "Prólogo"). A morte do rei veio interromper o projecto já que o novo soberano, D. João III, lhe concedeu, logo em 1522, o governo do Castelo da Mina, cargo que não terá chegado a exercer, embora talvez tenha viajado até S. Jorge.
Em 1525 Barros foi investido nas funções de tesoureiro das Casas da Índia, Mina e Ceuta, que exerceu até 1528, e em 1533 foi nomeado feitor da Casa da Índia, cargo de maior relevo e rendimento, que desempenhou durante cerca de trinta e cinco anos. Em 1535 recebeu, no quadro da política régia visando o povoamento e a colonização do Brasil, com Aires da Cunha, fidalgo com experiência do mar, e Fernão Álvares de Andrade, tesoureiro-mor do reino, a capitania relativa ao extenso território de costa que ia do Rio Grande ao Maranhão. Com a finalidade de tomarem posse da capitania, os três donatários organizaram em Lisboa uma expedição de grande aparato. A armada, que zarpou nos finais de 1535, acabou por naufragar perto do Maranhão, facto que constituiu, para lá dos aspectos dramáticos de que se revestiu, um desastre financeiro do qual João de Barros nunca se recompôs. Foi depois deste episódio que Barros se ofereceu a D. João III para "escrever as cousas da Índia".
Funcionário destacado da administração régia durante mais de trinta anos, João de Barros manteve uma intensa actividade como escritor. Com uma sólida formação humanista e uma amplíssima erudição, ao mesmo tempo que ia concebendo e escrevendo a sua obra historiográfica, Barros publicou em 1532 a erasmizante Ropicapnefma (que em português significa "Mercadoria Espiritual"), escreveu, além de algumas que em definitivo se perderam, um notável conjunto de obras de carácter gramatical, pedagógico e didáctico que publicou nos anos de 1539 e 1540, com destaque para a Gramática da Língua Portuguesa, compôs c. 1543 o Diálogo Evangélico sobre os Artigos da Fé, contra o Talmud dos Judeus, cuja publicação foi proibida pela Inquisição. Em 1567 renunciou ao cargo de feitor da Casa da Índia, retirando-se para a sua quinta da Ribeira de Litém, perto de Pombal. Morreu em Outubro de 1570.
Foi como historiador que João de Barros ganhou maior projecção. Projecto de uma vida, a Ásia constitui a "coroa de glória" da sua actividade como escritor. Dividida em décadas segundo o modelo do historiador romano Tito Lívio, a Ásia era uma das componentes de uma obra monumental, concebida em três partes: a Conquista, sobre os feitos militares portugueses nos quatro continentes: Europa, desde os Romanos, África, desde a tomada de Ceuta, Ásia, desde o Infante D. Henrique, e Brasil, a partir do descobrimento em 1500; a Navegação, que consistiria numa "universal geografia de todo o descoberto"; e o Comércio, em que se faria a descrição de todos os produtos naturais e "artificiais" "de que os homens têm uso", pesos e medidas, preços e trocas à escala mundial. Projecto à escala planetária, de que só conhecemos uma ínfima parte, relativa à "milícia" da Ásia. Sabe-se que a Geografia e o Comércio foram em grande parte escritos, embora se tenham perdido, acabando Barros por desistir de escrever as partes relativas à Europa e à África.
Com excepção das viagens à Mina e ao Brasil, e ao contrário de outros historiadores como Gaspar Correia, Fernão Lopes de Castanheda ou Diogo do Couto, João de Barros nunca saiu do Reino e não conheceu o Oriente. Como feitor da Casa da Índia, teve acesso directo e privilegiado às informações dos sucessos políticos, militares e marítimos, por vezes da boca dos próprios protagonistas. Pela sua mão passavam regimentos, roteiros, relações, cartas e negócios de África e do Oriente. A realização da sua obra historiográfica articula-se, pois, com a sua carreira de funcionário. Para escrever a Ásia João de Barros não se limitou às fontes portuguesas, ao seu vasto conhecimento dos escritores greco-latinos e aos muitos autores cristãos que, desde Marco Polo, escreveram sobre as coisas orientais. Procurou documentar-se sobre a história do Oriente a partir de fontes próprias, que com frequência refere ao longo das Décadas. Teve conhecimento, por exemplo, das crónicas dos reis de Quíloa, Ormuz, Guzarate ou Bisnaga, refere o Lorigh ou Tarigh, espécie de sumário dos reis da Pérsia, "o qual temos em nosso poder em língua persiana" (I, liv. 1, cap. 1), sobre a China utilizou, na sua perdida Geografia, um livro de cosmografia "que nos foi de lá trazido e interpretado por um chim que para isso houvemos" (I, liv. 9, cap. 1,2,3).
A publicação das Décadas da Ásia seguiu um ritmo descontínuo. A Década I foi impressa em 1552 e a II em 1553, mas a III só foi publicada em 1563. A IV, depois de um destino acidentado dos papéis do historiador após a sua morte, foi editada em 1615, reformada e acrescentada por João Baptista Lavanha. Diogo do Couto, guarda-mor do Tombo de Goa, historiador oficial, foi o prolífico continuador das Décadas. No Soldado Prático (ed. 1790), Couto traça o retrato da decadência do império português, fazendo perfilar a face sombria de uma expansão cuja dimensão gloriosa, fixada em termos historiográficos nas Décadas de Barros, veio a encontrar a sua expressão maior no poema épico de Luís de Camões, Os Lusíadas, publicado em 1572.
Historiador dos feitos do Oriente, amigo e panegirista de D. João III, distinguido pelo monarca com mercês várias e cargos de relevo na administração, João de Barros foi um dos expoentes e um dos porta-vozes destacados da ideologia expansionista da coroa portuguesa no século XVI. A sua concepção da história, servida por um inequívoco rigor documental, por uma vasta erudição e por uma língua grave e majestosa, reflecte a prudência do cortesão que serve o seu rei, mas também a noção humanista da necessidade da glorificação dos heróis. A exaltação dos protagonistas do império, como Vasco da Gama, Francisco de Almeida ou Afonso de Albuquerque, não permitia referências a episódios perturbadores da sua dignidade de heróis. Barros omite, por exemplo, a tentativa de sublevação ocorrida na primeira viagem de Vasco da Gama, silencia os actos de crueldade de Afonso de Albuquerque para com as populações vencidas, cala as divergências entre o vice-rei, Francisco de Almeida, e Afonso de Albuquerque, "por não macular uma escritura de tão ilustres feitos com ódios, invejas, cobiças e outras cousas de tão mau nome"( II, liv.3, cap.9). Por outro lado, a guerra contra os muçulmanos e a defesa e a expansão da fé cristã nos confins do Oriente concebiam-se como a continuação, num outro espaço geográfico, de um confronto multissecular cujo palco privilegiado fora a Espanha e a África. Também para Barros a "guerra justa" era a única guerra legítima, e por isso incitava D. João III a fazer "guerra aos infiéis e mouros de África; e, movido do santíssimo zelo, converta Etiópia e Arábia, Pérsia e Índia à verdadeira fé de Cristo [...] porque esta [guerra], sendo justa, é proveitosa e traz grande louvor ao rei cristão."
Sob um outro ponto de vista, contudo, são notáveis e precursoras a atenção e a sensibilidade antropológica do historiador na descrição dos amplos quadros geográficos e civilizacionais do Oriente, e indiscutível a sua capacidade em descrever o outro com a especificidade própria da sua cultura e dos seus sistemas sociais - como a chegada de Diogo de Azambuja à Guiné e o seu encontro com o régulo Caramansa, os encontros de Vasco da Gama com o catual e com o samorim de Calecute, a descrição do reino da China. Esta atenção e esta capacidade, inscritas num olhar concebido à escala planetária, acabam por convergir na perturbadora revelação, para o europeu do século XVI, como era Barros, da relatividade das civilizações. O caso da China é exemplar. O amplo espaço concedido por João de Barros à descrição do colossal império não deixa dúvidas quanto à admiração do historiador por uma civilização requintada e, em muitos aspectos, superior. Na sua pormenorizada e entusiástica descrição, que contempla elementos relativos ao quadro geográfico, à organização política e administrativa e à economia, Barros destaca o requinte da cultura chinesa, na qual se reuniam - supremo elogio do homem culto de Quinhentos - "todas as cousas de que são louvados Gregos e Latinos"(III, liv. 2, cap. 7).
Revelam-se aliás notáveis e surpreendentemente modernas algumas linhas-de-força do seu edifício historiográfico. A concepção planetária, em que sobreleva a importância dada aos quadros geográficos na sua articulação com a história, o destaque conferido à economia e às grandes rotas comerciais, a atenção à diversidade de culturas, instituições e sistemas sociais apesar do pressuposto eurocêntrico e do comprometimento ideológico, são alguns dos traços que fazem de João de Barros, indiscutivelmente, um dos grandes nomes da historiografia portuguesa e da Europa do Renascimento.
Bibliografia:
BAIÃO, António, "Documentos inéditos sobre João de Barros, sobre o escritor seu homónimo contemporâneo, sobre a família do historiador e sobre os continuadores das suas 'Décadas'", Boletim da Segunda Classe da Academia das Sciencias de Lisboa, vol. XL, 1917, pp.202-355. BARROS, João de, Ásia de Joam de Barros. Dos Feitos que os Portugueses fizeram no Descobrimento e Conquista dos Mares e Terras do Oriente. Primeira Decada, 4ª edição revista e prefaciada por António Baião conforme a edição princeps, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932. BARROS, João de, Gramática da Língua Portuguesa. Cartinha, Gramática, Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem e Diálogo da Viciosa Vergonha, reprodução facsimilada, leitura, introdução e anotações por Maria Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, 1971. BUESCU, Ana Isabel, "A Ásia de João de Barros. Um projecto de celebração imperial", D. João III e o Império. Actas do Congresso Internacional Comemorativo do seu Nascimento (Lisboa e Tomar, 4 a 8 de Junho de 2002), ed. dirigida por Roberto Carneiro e Artur Teodoro de Matos, Lisboa, CHAM e CEPCEP, 2004, pp. 57-74. FARIA, Manuel Severim de, "Vida de João de Barros", Discursos Vários Políticos, Évora, Manuel Carvalho, 1624. SARAIVA, António José, "Uma concepção planetária da história em João de Barros", in Para a História da Cultural em Portugal, 5ª edição, vol. II, Lisboa, Livraria Bertrand, 1982, pp.263-283.