Data de publicação
2009
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Área Geográfica
Povoação, depois vila, localizada na margem esquerda do rio Bons Sinais (Qua Qua), a cerca de 18 km da costa, na actual província da Zambézia, em Moçambique (17º 52' S; 36º 53' E). O topónimo reportava-se também à área abrangida pela capitania-mor aí sedeada (o distrito de Quelimane), que fazia parte do governo dos Rios de Cuama, depois Rios de Sena, dependente da capitania de Moçambique.

Situada em território do povo macua, Quelimane integrava, no século XV, a rede comercial muçulmana dominada por Quíloa, que se estendia por vários pontos da costa oriental africana. A sua fundação relacionou-se com o alargamento dos centros de exploração aurífera para o norte do planalto karanga, acompanhando a expansão do Estado do Monomotapa. Tal conduziu à emergência de uma rota comercial muçulmana através do Zambeze, que terminava em vários portos entre o delta e Angoche, em concorrência com o itinerário mais antigo que ligava o planalto a Sofala. Na origem da povoação esteve, provavelmente, a dispersão de famílias islâmicas de Angoche, as quais fundaram várias chefias na região do delta. Foi um desses chefes que Vasco da Gama encontrou quando estacionou no rio Bons Sinais, em 1498, no decurso da primeira viagem à Índia.

A presença continuada de portugueses em Quelimane está registada desde 1544, quando o capitão de Moçambique estabeleceu aí uma feitoria para negociar marfim. Com a progressiva expansão para o interior, os portugueses passaram a usar a rota do rio Zambeze, a que acediam pelas barras de Quelimane e do Luabo. No final da centúria, residia aí um capitão dos Rios, em cujas casas se acolhiam os mercadores que se dirigiam ao sertão. A povoação portuguesa, erguida numa zona plana e alagadiça, surgiu perto da localidade muçulmana, que fornecia mantimentos e serviços aos mercadores.

Nos primeiros anos de Seiscentos, os portugueses aumentaram o controlo da região. Após a cedência das minas do Monomotapa, pelo tratado de 1607, a coroa portuguesa organizou planos de colonização do vale do Zambeze, que tornaram premente o domínio do delta. A concorrência europeia, patente nos cercos holandeses à Ilha de Moçambique em 1607 e 1608, constituía uma ameaça à hegemonia portuguesa na região, suscitando ordens recorrentes da coroa para fortificar as bocas do Zambeze. Neste contexto, o governo do general D. Estêvão de Ataíde (1610-1613) resultou no avanço decisivo do domínio territorial na zona do delta, com a submissão de alguns chefes macuas, cujas terras foram concedidas a portugueses. No primeiro ano do seu governo, o general ordenou a construção do forte de Santa Cruz, certamente em materiais precários, na ponta sul da barra, a dos Cavalos Marinhos.

Subsequente ao tratado de 1629, em que o mutapa Mavhura Mhande se reconheceu vassalo da coroa portuguesa, foi gizado um novo programa régio de colonização. A região do delta, antes sujeita ao capitão de Sena, foi dividida, em 1633, em duas capitanias-mores, a do Luabo e a de S. Martinho de Quelimane. Em ambas as barras, começaram a ser edificados fortes de madeira, segundo a traça desenhada pelo engenheiro Bartolomeu Cotton, enviado da Índia. Após a desistência da exploração das minas pela coroa, em 1637, foi também abandonada a construção dos fortes que nasciam na baía do Linde e na ponta dos Cavalos Marinhos. A área do delta foi reintegrada na capitania de Sena, mas, logo depois, a capitania-mor de Quelimane foi autonomizada.

Na década de 1630, a zona abrangida pela capitania, dividida em prazos da coroa, estendia-se ao longo da costa desde o rio Maindo até próximo do rio Licungo. Penetrava cerca de 60 km para norte da povoação, enquanto pelo rio Bons Sinais se alongava 30 km até às terras do xeque muçulmano de Mirambone. Esse território foi alargado em finais de Seiscentos, seguindo a linha do litoral, até à margem direita do rio Raraga. Mas, a principal aquisição deste período foi o vasto território interior do Bororo (1693), que se estendia pelas margens do rio Licar. Este movimento de expansão territorial traduziu-se no aparecimento da expressão "Quelimane, o velho", que designava, no século XVIII, a área inicial dos prazos.

Durante Seiscentos, Quelimane afirmou-se como o porto de entrada no Zambeze, em detrimento do Luabo. Dava acesso à vasta área servida pelo rio, a qual constituía objecto do monopólio régio do comércio, arrendado ao capitão de Moçambique ou gerido por instituições da coroa (Junta do Comércio e Conselho da Fazenda da Índia). O seu agente no porto era o feitor do comércio, um dos principais funcionários da povoação a par do capitão-mor e juiz. Ele estava incumbido de encaminhar as fazendas para a feitoria de Sena e embarcar para a Ilha de Moçambique as remetidas daí. As ligações com a ilha ocorriam duas vezes por ano, na monção grande de Abril/Julho, quando se fazia a maior parte das trocas, e na monção pequena de Outubro/Novembro. No porto, as mercadorias eram transferidas para canoas que percorriam o rio. A entrada na sua difícil barra, com restingas de pedra e bancos de areia, exigia marinheiros experientes, os pilotos muçulmanos idos de Moçambique.

As descrições da povoação reportam a existência de um diminuto número de moradores. Os que buscavam a região preferiam os elevados lucros do comércio do ouro e do marfim obtidos em Sena e Tete. O território do delta era muito fértil, mas as ocasiões para escoar a sua produção agrícola eram limitadas, dado o escasso número de navios que a transportava para a Ilha de Moçambique. Para além dos módicos réditos da venda de víveres, os moradores de Quelimane faziam um reduzido negócio de marfim e prestavam serviços aos que frequentavam a rota fluvial, como o aluguer de casas, embarcações e escravos.

O centro urbano reflectia os moderados rendimentos dos seus moradores, poucos reinóis e uma maioria de goeses. Cerca de 1634, notava-se uma dúzia de casas ao longo do rio e no final da centúria elas eram 14 ou 15. Os edifícios, cobertos de colmo e raramente de telha, eram fabricados mormente em taipa, porque faltava a pedra e a humidade ameaçava os tijolos de adobe. As habitações eram rodeadas de hortas e cercadas por fortes paliçadas. Em volta, distribuíam-se vastos palmares e pomares e as casas dos escravos. Na povoação, existia uma igreja, a de Nª Sª do Livramento, paroquiada pelos jesuítas, o hospício dos dominicanos e a casa dos padres da Companhia de Jesus. No espaço urbano, destacava-se, em Seiscentos, o chuambo, um forte de madeira, sem guarnição militar, o qual abrigava os moradores das investidas dos chefes africanos. A pressão dos povos maraves, que, vindos do norte, acometeram nessa altura a região, contribuiu para que os macuas procurassem a protecção do forte português. Desenvolvendo uma identidade distinta, os macuas do litoral tornaram-se conhecidos por chuabos ("gente do forte").

Depois de meados de Setecentos, no contexto das reformas subsequentes à autonomia de Moçambique em relação à Índia (1752), ocorreu uma notória dinamização do porto e da povoação. A coroa recuperou as ordens para fortificar da barra, após terem encalhado aí dois navios holandeses. A construção do forte de Nª Sª da Conceição, em Tangalane, na ponta norte da barra, foi conduzida pelo engenheiro António José de Melo. Obrigou ao transporte de pedra da Ilha de Moçambique e da serra Morrumbala e prolongou-se de 1753 a 1757. Devido às cheias do Zambeze, no ano seguinte, o forte já estava arruinado e em 1770 ainda foi tentada a sua reconstrução em madeira. Mas, prevaleceu a tese dos que advogavam que as dificuldades oferecidas pela barra constituíam um meio suficiente de defesa. Ainda na década de 1750, foi criado o lugar de patrão-mor do porto para conduzir as embarcações desde o litoral, tal como o de condestável, incumbido de manter um farol e um pau de bandeira em Tangalane, para sinalizar a entrada na barra, e de anunciar a chegada dos barcos com tiros de pólvora.

A liberdade de comércio, instaurada em 1757, propiciou o aumento do fluxo comercial e do número de barcos que frequentavam o porto, registando-se mesmo alguma actividade de construção naval. A partir da década de 1770, grande parte da produção de cereais dos prazos e das terras vizinhas passou a ser canalizada para a Ilha de Moçambique. Tratava-se de alimentar não só a população da ilha, como também os navios negreiros. Com efeito, verificou-se um notório incremento do tráfico de escravos para as ilhas francesas do Índico, nos anos de 1770, e para o Brasil, a partir da década de 1790. Os escravos eram encaminhados para a alfândega da Ilha de Moçambique, donde seguiam para os portos de destino. Mas, desde a década de 1790, algumas embarcações recebiam autorização para sair directamente de Quelimane para as rotas transoceânicos, até que, em 1812, foi aberta uma alfândega.

Na sequência de ordens régias de 1761, em 6 de Julho 1763, foi instituída a câmara municipal e a povoação foi elevada a vila, conservando o nome de S. Martinho de Quelimane. O capitão-mor e juiz foi substituído por um comandante, por vezes, também designado governador, o qual podia acumular as funções de feitor da Fazenda.

As oportunidades do negócio esclavagista traduziram-se num assinalável aumento do número de moradores proeminentes: 20 em 1780, 30 em 1790 e 65 em 1822. Apesar do enriquecimento dos seus moradores e do interior das suas casas, a vila manteve-se como um conjunto de quintas dispersas por dois ou três arruamentos irregulares, frequentemente alagados. As novas edificações municipais, a casa da câmara e o pelourinho, surgiram nos anos de 1770. A igreja de Nª Sª do Livramento foi mandada reconstruir pelo governador e capitão-general Baltazar Pereira do Lago em 1776, mas só foi concluída em 1786 por António de Melo e Castro. A feitoria, instalada entretanto nas antigas casas dos jesuítas, foi reerguida em pedra na década de 1780. Nos seus armazéns, estacionava um destacamento militar e funcionava a única prisão existente na vila.

Devido à precariedade dos materiais utilizados nas construções antigas, a actual cidade de Quelimane conserva poucos vestígios - um dos quais é a sua igreja - de um passado anterior ao século XIX.

Bibliografia:
ANDRADE, António Alberto Banha de (ed.), Relações de Moçambique Setecentista, Lisboa, AGU, 1955. NEWITT, Malyn, A history of Mozambique, London, Hurst & Company, 1995. RODRIGUES, Eugénia, "O porto de Quelimane e a Carreira dos Rios de Sena na Segunda Metade do Século XVIII", in MENESES, Avelino de Freitas (coord.), Portos, Escalas e Ilhéus no Relacionamento entre o Ocidente e o Oriente, s/l, Universidade dos Açores / CNCDP, 2001. RODRIGUES, Eugénia, Portugueses e Africanos nos Rios de Sena. Os Prazos da Coroa nos Séculos XVII e XVIII, Dissertação de Doutoramento em História, Universidade Nova de Lisboa, 2002.